O VERDADEIRO AMOR NÃO SE DIVIDE, E HÁ DE SER VOLUNTÁRIO, E NÃO FORÇADO - CERVANTES

Na noite do Oscar, na semana do Dia da Mulher, escrevo para o blog e o que estou lendo? O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote da Mancha de Miguel de Cervantes, uma edição de 2010 da Editora Abril (em dois volumes), traduzida por Carlos Nougué e José Luis Sanchez. Não tem muito a ver com a temática da época, porque até os tradutores são homens. Segundo a professora Janice Theodoro, uma das melhores traduções dessa obra para o nosso idioma é do poeta Ferreira Gullar.


Mas Dom Quixote é um clássico da Literatura Universal. E, como clássico, ele transcende épocas e lugares para atingir todos os públicos. Ele fala da alma do ser humano e essa essência é eterna e imutável. O escritor Ítalo Calvino no livro Por que ler os Clássicos? descreve como a leitura dessas obras nos ajuda a entender os problemas atuais. Segundo ele, um clássico é um livro que nunca terminou de dizer o que tinha para dizer. O programa Café Filosófico fez uma série com especialistas discutindo clássicos sob a perspectiva moderna. Quem discute Dom Quixote é a professora Janice Theodoro. Assista o programa na íntegra no link abaixo.


O Dom Quixote foi escrito entre 1547 e 1616, sua primeira edição foi publicada em 1615. Ele se destaca por ser um dos primeiros livros a escrever no idioma espanhol como ele era falado. Antes disso, os textos costumavam ser muito “latinizados” e usavam uma linguagem rebuscada. Na verdade, a primeira autora é escrever em espanhol coloquial foi Santa Teresa de Ávila, ao escrever O Livro da Vida em 1567. Mas, talvez, por ser mulher, ela nunca pôde publicar a sua obra. O que aconteceu é que a obra “vazou”. As pessoas gostavam tanto da leitura, que começaram a fazer cópias ilegais do manuscrito. Graças a isso, sua obra sobreviveu.

Mas, voltando a Dom Quixote, o personagem magistral que junta a loucura com a dignidade. Entre as grandes ilustrações da obra, confira a de Pablo Picasso. Estou lendo o comecinho do primeiro volume. Até aqui, tenho vontade de falar de duas obras que conheci recentemente e que são mencionadas por Cervantes: Cantar de Mio Cid e La Araucana. Cantar de Mio Cid é um texto escrito entre 1140 e 1207. As filhas do Cid, em certo ponto da estória, são violentadas e agredidas, como uma forma de vingança contra o Cid. Esse ato de “vingança” (por que será que é sempre contra as mulheres?) gerou o lindo quadro abaixo. La Araucana é um poema épico, escrito entre 1569 e 1589, que descreve a conquista do Chile. É impressionante o fato de isso ser citado por Cervantes. Para se traçar um paralelo, seria como se Camões citasse um poema épica que descrevesse a conquista do Brasil.
Las hijas de Cid - Ignácio Pizano (1879).

Agora o ápice da minha leitura (até agora), foi a morte do jovem Grisóstomo. Esse jovem se suicidou porque não tinha um amor correspondido. Ele era apaixonado por uma jovem rica chamada Marcela. Ela era órfã e seu tio não fazia muita questão que ela se casasse... De qualquer modo, a Marcela está sendo “acusada” pela morte do rapaz. A própria Marcela apareceu no enterro do jovem e leiam o que ela disse:
‘- Não venho, ó Ambrósio!, por nenhuma das que disseste – respondeu Marcela -, mas volto por mim mesma, e para mostrar quão despido de razão estão todos aqueles que de suas penas e mortes de Grisóstomo me culpam; e, assim, peço a todos os que aqui estais que me prestais atenção, que não será mister muito tempo nem gastar muitas palavras para persuadir de uma verdade os sensatos. Fez-me o céu, de acordo com o que vós dizeis, formosa, e de tal maneira, que, sem poderdes fazer outra coisa, a que me ameis vos move minha formosura, e pelo amor que me mostrais dizeis e ainda quereis que esteja eu obrigada a amar-vos. Eu sei, com natural razão que Deus me deu, que tudo o que é formoso é amável; mas não consigo compreender que, em razão de ser amado, esteja obrigado o que é amado por formoso a amar a quem o ama. Mais sendo o feio digno de ser aborrecido, mui mal seria o dizer: “Amo-te por formosa: tens de amar-me ainda que seja feio”. Mas, no caso de serem parelhas as formosuras, nem por isso hão de ser parelhos os desejos, porque nem todas as formosuras enamoram: algumas alegram a vista e não rendem à vontade; se todas as belezas enamorassem e rendessem, seria um andarem as vontades confusas e desorientadas, sem saber em qual haviam de parar, porque, sendo infinitos os sujeitos formosos, infinitos haviam de ser os desejos. E, de acordo com o que ouvi dizer, o verdadeiro amor não se divide, e há de ser voluntário, e não forçado. Sendo assim, como eu creio que o é, por que quereis que se renda minha vontade à força, obrigada tão somente por dizerdes que me amais? Se não, dizei-me: se assim como o céu me fez formosa me tivesse feito feia, justo que me queixasse de vós por não me amardes? (...) Eu nasci livre, e para poder viver livre escolhi a solidão dos campos: as árvores dessas montanhas são a minha companhia, as claras águas destes riachos, os meus espelhos; às árvores e às águas comunico meus pensamentos e formosura.”
Muito jovem Cervantes entrou num duelo por causa de uma moça. Ele não pôde se casar com a mulher que ele amava. Na voz de Marcela, escuto aquela jovem por quem o autor se apaixonara na juventude, aquele amor não realizado.
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