DO QUE A MINHA AVÓ MORREU? DE UM AVC (ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL) E MUITA IGNORÂNCIA

Minha mãe tem 68 anos. Ela nunca foi oficialmente diagnosticada, mas ela provavelmente é portadora de um transtorno de espectro autista. Isso significa que ela sempre teve dificuldades de socialização, tem dificuldades para fazer duas atividades ao mesmo tempo, como olhar nos olhos de uma pessoa enquanto mantém uma conversa, e tem dificuldades para entender coisas não literais. Mas ela se formou em Educação Física no final da década 70 e foi aprovada num concurso público, que proporcionou a ela uma renda e uma vida digna. Ela sempre foi vítima de muita discriminação e preconceito da sociedade (inclusive dos familiares mais próximos) e isso se estendia a mim na minha infância. 
Depois de aposentada, minha mãe teve um AVC isquêmico, que comprometeu sua fala. Ela manteve todas as outras funções, mas, até hoje, tem muita dificuldade para falar. Fala coisas desconexas e sem sentido. Ela percebe que não falou aquilo que ela queria, mas não consegue se corrigir pela fala. Por isso, ela faz gestos, sinais ou escreve. A mente dela está completamente lúcida, ou, pelo menos, igual ao que sempre foi antes do AVC. Mas as pessoas reagem com ela ainda pior. Uma irmã dela a encaminhou ao psiquiatra, que, obviamente, não encontrou nada que pudesse ser tratado. Muitas pessoas a tratam de forma discriminatória, porque acham que ela não está lúcida, simplesmente porque eles (e todos nós) não entendemos o que é diferente de nós sem esforço consciente da nossa parte.
Minha mãe e eu.

A História da minha avó
Eu recebi o nome da minha avó, mãe da minha mãe. Minha mãe ficou órfã aos 10 anos de idade e sempre teve muito complexo de inferioridade por causa disso. Segundo ela, seu pai sempre disse que “tem muito doido na família da sua mãe” e que ela viveu a vida toda muito triste até que percebeu que “tem doido na família de todo mundo”. O que já me contaram sobre a minha avó é que ela emprestava dinheiro para pessoas pobres, pequenos valores que não valiam a pena para o meu avô emprestar e que essas pessoas sempre pagavam e davam menos calote do que os grandes negócios do meu avô, o que fez com que minha avó tivesse uma fortuna à parte do meu avô. Vovó inventou o micro crédito. Risos.
Outra coisa que já me disseram, é que ela sempre dava comida para os pobres. Já naquela época, numa Minas Gerais rural e interiorana, existiam muitas crianças sem pais e abandonadas e elas iam na casa da minha avó comer. Uma dessas crianças depois se tornou uma adulta e contou esse relato para minha mãe. Embora o sobrenome do meu avô seja “Higino da Costa”, quando perguntada, minha mãe sempre disse que sua mãe se chamava Isotilia Rezende de Medeiros. Uma vez, em São Paulo, encontrei uma pessoa da mesma região, que me falou que os “Rezende de Medeiros” da nossa região são quase todos de ascendência judaica, vindos de um arquipélago no Atlântico chamado Açores. Minha mãe achava um absurdo eu limpar a casa no sábado (até hoje acha!). Ela dizia que a mãe dela proibia fazer qualquer trabalho no sábado. “Onde já se viu essa menina querer limpar a casa no sábado?”. Para os judeus, é interditado fazer qualquer trabalho no sábado. Isso provavelmente é uma herança que eu recebi da tradição judaica.
Outra coisa que é certa é que minha avó sabia ler. Minha mãe recebeu de herança um livro sobre alimentação que era da mãe dela. Esse livro sumiu nas bagunças e incoerências do meu pai (fato que lamento muito). Quando eu fiz 18 anos, minha mãe comprou outro livro sobre alimentação e me deu. Na cabeça dela, deve ser uma tradição também. Toda mãe tem que dar um livro sobre alimentação saudável e normas de alimentação para as filhas.

Minha avó Isotilia Rezende de Medeiros, mãe da minha mãe.

Isso é tudo que eu sei sobre minha avó, que não conheci e morreu no ano de 1960. Mas, afinal, por que isso é importante? E como ela morreu?
Minha mãe nunca falou, isso é quase um tabu na família. Um dia uma tia me contou, como se fosse um segredo terrível, uma coisa que iria me fazer dormir mal. Minha avó tinha dificuldades para falar com as pessoas olhando nos olhos e era considerada “meio estranha” pelos outros. Um dia, do nada, ela começou a falar coisas desconexas e não conseguir se comunicar com as pessoas. Hoje eu entendo isso como, minha avó era autista e um dia ela teve um AVC isquêmico igual ao da minha mãe. Mas, naquela época, ninguém sabia de nada.
Meu avô procurou a única ajuda médica que existia na época, que era o hospício de Uberaba. Ele deixou a minha avó lá, acreditando que era o melhor remédio. Depois ele foi avisado, por telegrama, que minha avó tinha morrido. Quando ele chegou lá, eles se recusaram a entregar o corpo, deram só as roupas dela e a aliança. E ficou por isso mesmo. Não sei quem e como contou para minha mãe que a mãe dela tinha morrido.
Depois de assistir ao documentário Holocausto Brasileiro – Vida, Genocídio e 60 Mil Mortes no Maior Hospício do Brasil, baseado no livro de mesmo título da jornalista Daniela Arbex, deu para entender um pouco mais da monstruosidade que fizeram com a minha avó e como isso era aceito e visto como o melhor para a época.

Livro sobre o maior Hospital Psiquiátrico do Brasil
que ficou em funcionamento sob condições desumanas por mais de 80 anos.

Apesar de ela não ter sido enviada para a mesma instituição, acredito que o descaso e a desorganização eram quase os mesmos. Possivelmente, a minha avó, que estava completamente lúcida apesar dos problemas com a fala, deve ter se revoltado com a situação de estar naquele lugar e eles devem tê-la mandado para o choque elétrico (uma tortura desumana), isso induziu mais um AVC e ela morreu. É o mais provável, na minha opinião. Mas ela também pode ter morrido de fome ou sido agredida por outra paciente até a morte. O corpo pode não ter sido entregue porque eles a enterraram como indigente ou porque ele foi vendido para alguma faculdade de Medicina, um negócio muito lucrativo na época.
Ainda não li o livro da Daniela Arbex, mas assisti o documentário que está disponível na íntegra no Youtube. É paradoxal ver que todas essas atrocidades aconteceram na mesma época que a doutora Nise da Silveira tentava outras abordagens para o tratamento psiquiátrico, isso também pode ser visto no filme Nise – No Coração da Loucura. Como o Brasil é múltiplo e desigual? Ao mesmo tempo que fazemos as maiores atrocidades, somos capazes de fazer o bem extremo. Não seria melhor um caminho do meio?

Filme sobre a vida da média psiquiatra brasileira Nise da Silveira.

Como prevenir e identificar um AVC hoje?
Para finalizar, gostaria de lembrar que AVC é uma coisa séria até hoje. É importantíssimo ser capaz de perceber na hora que a pessoa está tendo um AVC e encaminhá-la à ajuda médica. Quanto mais rápido o socorro, menores serão as sequelas. Um colega de trabalho (de apenas 35 anos) teve um AVC dentro do meu laboratório e eu, mesmo depois do histórico da minha mãe, não fui capaz de perceber. Nenhum dos nossos colegas foi e, depois, nós todos nos sentimos extremamente mal por não ter reagido a tempo. Os sinais não são tão dramáticos como as pessoas imaginam. Por favor, assista até o fim esse vídeo educativo.


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