NOS TEMPOS POLÍTICOS ATUAIS, LER ÉRICO VERÍSSIMO LIBERTA!

Continuo lendo outros livros, mas tive uma intuição de pegar para ler um livro velho (de 1951), quase esquecido na minha estante. Chama-se Um Lugar ao Sol (publicado pela primeira vez em 1936) do consagrado escritor gaúcho Érico Veríssimo (Cruz Alta, 1905 – Porto Alegre, 1975). Com certeza, Érico Veríssimo é um dos maiores nomes da nossa Língua Portuguesa. O romance que estou lendo começa em um velório. De repente, me deparei com uma passagem que diz muito sobre os dias atuais da política brasileira. Chega até a ser consoladora para mim. Qualquer semelhança entre esse general e os nossos líderes políticos atuais NÃO é mera coincidência. Transcrevo a passagem na sequência:
O general Campolargo era quase uma figura de lenda. O Papão. O Bicho Tutu. Um homem de fama negra. Diziam que na revolução de 93 mandava degolar destacamentos inteiros de federalistas. Contavam-se dele coisas horríveis, crueldades requintadas. Fora o homem mais temido nos seus tempos de mando e de prestígio. Sua voz era ouvida em todo o Estado. Em Jacarecanga durante trinta anos não houvera oposição. O general esmagava qualquer tentativa de desobediência. Empastelava jornais. Mandava surrar jornalistas. Era mau, despótico, ditatorial. Bastava não gostar da cara duma criatura para expulsá-la da cidade, do município, com o lombo marcado. Fazia o que queria dos juízes, promotores; dispunha da vontade dos jurados. Absolvia e condenava quem e quando queria. Justiça? Quá-quá-quá! A justiça única que existia em Jacarecanga se chamava Justiniano Campolargo. E ao redor dele se formou uma lenda pavorosa. As mães não assustavam mais os filhos com o Boi Tatá. Diziam: “Si o nenê não dormir, mamãe manda chamar o general Justiniano”. A revolução de 23 pegara o general já velho. E ele saíra da sua toca para “defender mais uma vez a Legalidade” – segundo as suas próprias palavras. Vestira o velho uniforme de alamares e dragonas dourados. Mal podia manter-se em pé. Estava inválido. Mas a palavra “revolução”, o cheiro de pólvora e de sangue lhe deram forças. O velho general ressurgiu. E, passada a revolução, em Jacarecanga, se contavam murmúrios medrosos e novas crueldades... Uma família degolada: pai, mãe, duas filhas e uma criança de colo. Um oficial inimigo, que se entregara confiante, fuzilado pelas costas. “Dêm o alívio no patife!” – era a ordem para degolar.
Depois o tempo passou. Reviravoltas na política. O velho general teve o seu prestígio abalado. Recolheu-se. Ficou morando com a filha única, casada com o advogado. Jacarecanga esqueceu quase por completo o seu monstro. O general Campolargo era agora um objeto de museu. Uns falavam nele ainda com um vago orgulho; outros com um vago temor. E todos sabiam que o velho se finava aos poucos. Devia ter visões pavorosas. Ou então não conhecia o remorso. Os poucos amigos que o visitavam contavam que ele parecia um leão velho e pesteado a que todos os burros agora davam coices. Narravam minúcias de seu sofrimento, a sua lenta dissolução. O velho não morria – afirmavam – acabava-se, apodrecia em vida. Viúvas de federalistas que o general mandara matar, murmuravam satisfeitas: “Nesta vida se faz, nesta vida se paga. A hiena está vivendo pra pagar os pecados.”
Vasco conhecia a lenda. Muitas vezes, quando ele era criança, as criadas ou mesmo Dona Clemência o ameaçavam com o nome do feroz guerrilheiro.
[...]
A cabeça era uma cidra murcha, e lembrava uma múmia. Sobre a calva dum rosa sujo se amontoavam falripas brancas. Era o rosto dum amarelo doentio, estava pregueado de rugas terrosas. As zigomas salientes pareciam querer furar a pele. A boca cruel já não tinha mais desenho certo. O nariz afilado era transparente e arroxeado como o nariz dum defunto. Mas foram os olhos que mais forte impressão causaram em Vasco. Eram uns olhos perversos, olhos de crocodilo, velados por uma película que lhes dava qualidade fosca.
-Chegue-se! – sibilou o velho.
Vasco aproximou-se mas ficou alerta, cuidando o bastão.
Silêncio. Os olhos de sáurio analisavam o rapaz.
- Senhor mandou me... – começou este.
-Cale-se! Ssst! – Bateu nervoso com o bastão no soalho. – Patife! Continência! Sentido! Quem manda aqui sou eu!
A voz se sumiu num ronco. O velho começou a arquejar. Os olhos ficaram mais sombrios.
Vasco sentia-se envenenado pelo cheiro que andava no ar.
Depois dum instante, remota e pálida, a voz se ouviu:
- Então agrediu o Bragança, hein? Agrediu o Bragança, hein? Quebrou-lhe a cara?
Desatou a rir um riso fininho, sumido, sincopado.
- Eu...
- Cale-se! Não se justifique. Um homem não se justifica! Patife! Aguente os seus atos. Ssst!
Silêncio. Vasco olhava em torno. Havia a um canto um busto do Patriarca. Uma cômoda antiga. Um mapa do Rio Grande do Sul na parede. E dentro do grande quadro com moldura, as medalhas do general. Uma cama de casal, antiquíssima, de pau lavrado. Um baú com feixos de couro. Retratos nas paredes.
- Então bem na cara, não? E o patife gritou? Fugiu?
Vasco lembrou-se que o general odiava o prefeito. Não se conformava com o ostracismo. Os prefeitos sempre lhe haviam dado cega obediência. Agora ele estava na dissidência... Odiava o major Bragança.
- Tapei-lhe o olho com um soco, - disse Vasco, que continuava excitado. O cheiro pestilencial lhe fazia mal. Não esquecia a “agressão” do corredor. O general era também irritante.
- Pois fez mal! Portou-se como um idiota! Bem mostra que é Albuquerque. Conheci o Olivério. Que homem impossível!
Vasco se impacientava. O sangue lhe subia à cabeça. Não podia ficar naquela atitude humilde, acovardado, sem reagir. Precisava gritar com o velho.
O general continuou:
- Por que não lhe meteu o punhal? Por que não lhe meteu uma bala. Porcalhão! – Estendia o bastão, agitava-o no ar, procurando ferir Vasco.
O rapaz deu um pulo e gritou:
- Não sou bandido como você, ouviu? E não berre que não sou surdo.
O gal. Justiniano sibilou furioso. Atirou o bastão como um dardo contra o rapaz. Vasco quebrou o corpo e livrou-se do golpe. Ficou de longe, ofegante, com as mãos segurando a guarda da cadeira, numa atitude de defesa.
O velho arquejava. Um ronco de morte lhe saía do peito. Os olhos de sáurio se fechavam.
Houve uma pausa longa. Vasco tornou a sentar-se.
Pensou em ir embora. Sairia sem dizer nada. Não era peteca. Se quisessem brincar, que escolhessem outro...
- Canalha... – murmurou o velho, mais calmo. – Quantos anos você tem?
- Vinte e dois.
- Nos cueiros, nos cueiros... Estou com noventa e dois...Chegue-se... Chegue-se...
Vasco se aproximou, desconfiado.
- Vocês todos são uns galinhas... – disse o caudilho com voz sumida. – Homens eram os de antigamente. Hoje está tudo perdido. Não há mais autoridade. Não há um homem que mande. Patifes! Canalhas! Inimigo não se poupa! – Fitou os olhos velados na imagem do Patriarca – Agora falam em igualdade... Chô mico!

Capa da edição mais recente da obra, editora Companhia das Letras, 2006.

- Os tempos mudaram, general...
O velho se cuspiu todo:
- Mudaram qual o quê! É a falta de homens... Deram o alívio no João de Deus, hein? Me contaram. Bem no olho. Ssst! Patifes. E você só dá um soco no olho do sacripanti que mandou matar o seu parente... Chô mico! Devia era dar-lhe outro tiro no olho!
- Violência só puxa violência, general...
- Vá pro inferno! Me dê a bengala... Uns medrosos é que vocês são... Me dê a bengala, eu disse!
Vasco obedeceu. As mãos de defunto do general acariciaram o bastão.
- Você nasceu ontem, fedelho de borra. O que vale é a força. – Baixou mais a voz numa confidência. – Um homem só é respeitado quando se impõe pele violência. Não vá atrás de lerias... Inimigo não se poupa... – Sibilou e fez com o dedo indicador no pescoço um simulacro do gesto de degolar. – Inimigo morto é perigo morto. O mais forte arrasta as fichas. Ssst!
Vasco estava cansado. A voz rouca, velha e seca no quarto sombrio. Os moveis antigos. O cheiro infecto. Aquela cara de múmia, os olhos frios e maus de réptil.
- Fui manda-chuva. Ninguém me pisou no pala, nunca! Deus me castigou, não me deu nenhum filho, só um rabo de saia que não vale um patacão... Só sabe fazer crochê... O marido é um beldroegas, que tem mania de igualdade, de democracia... Raça de maricas! Não há mais nenhum homem que preste...
Vasco sentiu uma dor aguda na mão. O velho lhe cravava nas carnes as unhas aguçadas. Vasco ergueu-se a tempo para livrar-se duma nova porretada.
Sentiu vontade de ser cruel, de fazer a hiena sentir a sua impotência, a sua velhice irremediável, a proximidade de seu fim...
Mas teve pena. Ficou simplesmente olhando.
Ouviu um ruído macio, familiar. Viu que da cadeira do general escorria para o chão um líquido cuja identidade não lhe ficou por muito tempo desconhecida. Um cheiro ativo e amoniacal se espalhava ao mesmo tempo pelo quarto.
Vasco olhava... O feroz general Justiano Campolargo aos noventa e dois anos voltava ao estado de bebê. Alguém precisava vir maternalmente mudar-lhe os cueiros.
Ali estava o degolador, o ditador de Jacarecanga, o temível chefe político, o vencedor de muitas batalhas, um dos pilares mais fortes do antigo Partido.
Aquilo era mil vezes pior que a morte.
De pernas abertas e cabeça atirada para trás o general agora choramingava:
- Nicanor! Nicanor! Chamem o Nicanor! Onde andará esse mulato patife que não vem me limpar? Vicentina! Nicanor!
E chorava. Debaixo de sua cadeira se formara um lago escuro.
Vasco saiu apressado do quarto, sem voltar a cabeça. No corredor ouviu ainda o choro fraco do velho.
De novo na rua, Vasco respirou fundo. Queria que o ar livre lhe limpasse os pulmões. Ele se sentia contaminado. Se demorasse mais tempo na toca do general, ficaria com cem anos na alma e perdido para sempre.
Mas lá estava o céu azul. Lá estava o sol dourado. O vento cheirava campo. Uma nuvem branca no horizonte lembrava um enorme veleiro. Sim, existia também o mar... O mundo largo e colorido. Ilhas varridas por todos os ventos... Aquela cidade misteriosa de seus sonhos. E a aventura.
Vasco caminhava. O mundo era bonito, apesar do general, apesar da ideia de velhice e de morte, apesar de tudo quanto havia de sujo e doentio.
O vento esfiapou as velas do navio que vogava no céu. Um preto passou carregando um cesto de laranjas. Uma criança descalça atravessou a rua correndo. Alguém cantou... Onde? Havia rosas brancas e vermelhas num jardim. Era a vida.
Se você gostou dessa passagem e tem vontade de ler outros trechos literários, recomendo também o romance histórico e trágico (real!) entre os negros Rosa e Marcos, que aconteceu em Minas Gerais por causa de um dos maiores diamantes do mundo (clique aqui para ler).
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