Um Papo sobre o que Realmente Afeta as Nossas Vidas: O Dólar !

Há alguns anos (em uma época em que o dólar não estava nem a três Reais e a gente achava que era caro!), eu disse para um namorado: “Preciso falar sobre uma coisa que afeta nossas vidas!”. Ele parou o que estava fazendo, olhou para mim com o rosto super preocupado e perguntou: “A cotação do dólar?” (Risos!). Aí eu ri muito, porque é verdade. No Brasil, nada afeta mais a minha vida, a sua vida e a vida de qualquer pessoa do que a cotação do dólar. O dólar, de certa maneira, reflete a economia de um modo geral. Comparado a isso, o resto é irrelevância.


Fonte da Imagem: Unsplash - Crédito:  Wilhelm Gunkel @wilhelmgunkel


No entanto, parece que nós perdemos o foco do que realmente afeta as nossas vidas. Essa semana ouvi várias discussões e polêmicas sobre pessoas que falaram (e postaram) coisas inadequadas sobre diversos temas. Lei Universal da Vida. Toda semana, todo dia, toda hora, todo minuto, alguém fala alguma bobagem. Muitas vezes, online. Enquanto eu escrevo este artigo, alguém, com certeza, já falou alguma bobagem completamente absurda sobre algum tema. Porém, no que isso afeta a nossa capacidade de comprar comida amanhã? Quem de nós realmente vai ganhar menos ou mais dinheiro com isso?

Para mim, é chocante o fato de que, também nesta semana, acabou o programa Bolsa Família. E não teve polêmica! Eu quero encaminhar este texto de uma forma que nos leve a pensar sobre o teto de gastos, mas me deixa falar um pouquinho sobre programas governamentais antes. O Bolsa Família era um programa de Estado que, quando começou, eu era radicalmente contra. Achava que era uma esmola e que não iria resolver nada. Resolveu a fome, a miséria, a mortalidade infantil e até a violência doméstica. Agora o programa já estava estabelecido, consolidados, com regras claras sobre quem poderia receber o benefício. Embora houvesse limitações, os resultados do programa foram inegáveis. Além disso, o Bolsa Família não tinha prazo para acabar.


Imagem com licença Creative Commons

Agora o programa que irá substituí-lo chama-se Auxílio Brasil. E tem prazo para terminar em dezembro de 2022. Ano de eleição. As regras do Auxílio Brasil não são claras. O programa não define quem pode ou não receber o benefício e retira a gestão dos municípios (que estão mais perto das suas populações vulneráveis) e coloca a gestão nas mãos do Governo Federal. Como alguém em Brasília vai saber escolher quem deve receber o benefício no interior do Amazonas? Só por isso, o novo programa já abre margem para muitas ineficiências e fraudes. Além disso, o Auxílio Brasil tem condições controversas. Por exemplo, ele dá mais dinheiro para quem tem alguém com carteira assinada na família. Famílias que tem alguém inserido no mercado formal, geralmente, não estão passando fome. É a lógica de dar mais para quem já tem alguma coisa e menos para quem não tem nada. Fiquei imaginando se os “obreiros” das igrejas neopentecostais têm suas carteiras assinadas. Se esse for o caso, o Auxílio Brasil dará um auxílio maior para as famílias de obreiros, fortalecendo uma “elite” da miséria. Esse auxílio, da forma como parece estar desenhado, dificilmente chegará a, por exemplo, mulheres pobres com filhos. Ou seja, dificilmente chegará a quem realmente precisa do dinheiro para não passar fome ou morrer.

Mas não é “só” esse o problema. O problema é que o Auxílio Brasil fura o teto de gastos. Era um teto mal desenhado e mal pensado. Eu tinha certeza de que ele seria furado um dia. Mas eu não imaginava que fosse tão rápido. Muito menos que fosse feito de uma forma tão arriscada, perigosa e inepta. Talvez a palavra certa para isso seja “de uma forma irresponsável”. Para dizer que não se está furando o teto, criou-se a chamada “PEC dos Precatórios”. Trata-se de um Projeto de Emenda Constitucional (PEC) que permite que o Governo Federal dê calote em dívidas com Governos Estaduais, aumentando assim, artificialmente, o dinheiro disponível. Essa PEC parece tramitar e ser aprovada de maneira anormalmente rápida no Congresso. Um dos motivos parece ser que, desde o ano passado, a aprovação de uma PEC libera algo chamada “emenda do relator”, que permite ao deputado relator usufruir (e liberar para aliados) uma quantia (atualmente em torna de cinco bilhões de Reais) sem justificar para o quê e sem prestar contas. Possivelmente os deputados usem esse dinheiro para se reeleger. O esquema é muito parecido a uma compra de votos. E aumenta mais ainda o furo do teto de gastos.

Mas por que furar o tal teto de gastos é tão ruim assim? Porque as teorias econômicas mais aceitas (chamadas ortodoxas) afirmam categórica e comprovadamente que isso gera inflação. No pior cenário, também podemos entrar em um ciclo quase infinito de inflação, desemprego, inflação de novo. Esse cenário catastrófico causa muito sofrimento às pessoas, uma vez que serão incapazes de suprir até mesmo suas necessidades mais básicas. O Brasil já teve sérios problemas com inflação até 1994. Só foi sanado com a entrada do Plano Real, que criou a nossa moeda atual. Para quem quiser saber como é esse drama na perspectiva humana, recomendo o livro da jornalista Miriam Leitão, “Saga Brasileira: A Longa Luta de um Povo por sua Moeda”. Em 2017, eu escrevi uma resenha sobre esse livro e vou deixar o link aqui.




Mais técnico, o controverso livro “Oito Séculos de Delírios Financeiros – Desta Vez é Diferente” dos economistas Carmen M. Reinhart e Kenneth S. Rogoff fez a minha cabeça por muito tempo. Escrevi uma resenha sobre este livro em 2016 e vou deixar o link aqui. Em resumo, os autores são economistas ultra ortodoxos. Para eles, não tem jeito. O governo não deve furar o teto, mesmo que isso signifique deixar as pessoas sofrerem (muito!) agora, porque, no longo prazo, a economia vai se recuperar e muita gente viverá melhor. Se o governo furar o teto, a crise (e o sofrimento das pessoas) será muito mais longa e impactará um número muito maior de pessoas de forma mais arrasadora.




Em 2021, um amigo me recomendou ler “The Deficit Myth – Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Economy” da economista norte-americana Stephanie Kelton. Em português, o título seria algo como “O Mito do Déficit – Teoria Monetária Moderna e o Nascimento da Economia do Povo”. Eu já tinha escutado o economista brasileiro André Lara Rezende (de quem admiro muito as ideias) mencionar alguma coisa sobre a Teoria Monetária Moderna (TMM) e esse meu amigo me vendeu bem o livro, falou que estava super na moda entre os liberais norte-americanos. Eu li. Até gostei. Merece que um dia eu escreva uma resenha só sobre ele (se vocês pedirem, eu escrevo).




Em resumo, o que o livro defende é que, se o país tiver uma moeda soberana, ele pode, sim, priorizar o bem-estar de seu povo e furar o teto de gastos. O mais importante é ter certeza de que (e garantir, custe o que custar que) o dinheiro gerado com esse furo será bem aplicado. Ser bem aplicado aqui é ir diretamente para o bem-estar das pessoas, quase sem intermediários. O livro defende uma ideia de que o dinheiro do furo seja gasto gerando o “emprego mínimo”. Defende que o governo deveria pagar uma quantia mínima para que qualquer pessoa desempregada exercesse um trabalho na comunidade. Por exemplo, toda pessoa desempregada poderia ir a prefeitura pedir um emprego e ganhar um salário-mínimo para exercer alguma atividade na cidade. Assim, o desemprego poderia ser zero e o salário-mínimo seria mínimo de fato. Quando há desemprego, o verdadeiro salário-mínimo é zero (isto é, não ganhar nada).

No caso do Brasil, seria zero Reais. Essa é que a questão. O Real não é moeda soberana. Um país que tem uma moeda soberana é um país que pode emitir dívidas na sua própria moeda, porque os demais países do mundo confiam nela. Por exemplo, o dólar dos EUA. Oh, o dólar voltando! As dívidas externas e internas dos EUA são na moeda dos EUA, o dólar. E o governo dos EUA controla a emissão do dólar. Ele pode simplesmente decidir emitir mais dólar. Os EUA controlam todo o jogo e mesmo para eles, propor um furo no teto é um tema controverso e arriscado. As dívidas e negócios do Brasil no exterior são em dólar e não em Real. A gente joga o jogo (não tem como não jogar!), mas não controla as regras. Nossa estratégia obrigatoriamente tem que ser mais conservadora e defensiva (fidelidade ao teto de gastos, por favor!).


Fonte da Imagem: Pixabay - Crédito: joelfotos /274 imagens

Talvez a nossa “sorte” seja que nossa maior dívida é interna (portanto, em Real) e não externa (em dólar). Confesso que fiquei um tempo pensando como resolver esse problema para o caso do Brasil. Como evitar que as pessoas passem fome? Como fazer isso sem furar o teto? Se for preciso furar o teto, como fazer isso de uma maneira que cause sofrimento para o menor número de pessoas durante o menor tempo possível? O fato é que eu não tenho a resposta para essas perguntas. Também não confio nas mãos das pessoas que estão tomando as decisões sobre esse tema agora. Gostaria muito que a polêmica da semana fosse sobre isso, para gerar mais debate e conscientização. Cobrança política de fato. Inconformada, busco ao menos fazer a minha parte escrevendo este artigo.

Muito obrigada por acompanhar o meu trabalho. Se você gostou, pode me acompanhar também nas redes sociais, FacebookInstragram e Linkedin.


Até a próxima!


Sobre a autora

Sou Isotilia, algumas pessoas também me conhecem como Ada. Sou engenheira, fascinada por tomadas de decisão em ambientes complexos e negociações. Sou apaixonada por Mentoria, Educação, Consultoria, Orientação e Pesquisa na área de Gestão e Tomada de Decisão, principalmente aquelas que envolvem a integração de métodos quantitativos e inteligência artificial.

Sou mestra e doutora em Engenharia de Produção pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente estou fazendo MBA em Negócios Digitais (USP) e sou orientadora dos projetos finais do curso de MBA em Gestão de Projetos (USP), desde 2018. Em transição para assumir um projeto na Universidad Adolfo Ibáñez (UAI), no Chile, reconhecida por ter a melhor Escola de Negócios da América Latina. Já orientei mais de 50 projetos de gestão, apliquei-os a diversos setores.

Minha tese de doutorado foi o desenvolvimento de um modelo de gestão de custos de estoque, aplicado ao comércio eletrônico. Na minha dissertação de mestrado, desenvolvi indicadores para medir o desempenho de corredores de transporte, integrando três pilares da sustentabilidade (econômico, social e ambiental).

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