AUTISMO NO BRASIL E NO CANADÁ
Meu último fim de semana, foi bom e ruim
ao mesmo tempo. Os alunos que eu oriento no MBA de Gestão de Projetos no Brasil
defenderam. Tive 14 ótimos resultados e um resultado frustrante. Estou tentando
aprender com o resultado frustrante. É sempre um processo difícil.
NOVIDADES SOBRE O VOLUNTARIADO
Aqui, no Canadá, eu me confundi com a
data do voluntariado. Era no domingo e eu fui no sábado. Como era fim de
semana, voltei outra vez no domingo. De manhã foi uma atividade de Natal para o
colégio internacional Phrare. Fomos minha supervisora, outro voluntário e eu.
Os dois primeiros são franceses.
Teve várias crianças. No evento, tinha
um mapa para marcar de onde os participantes vinham. Só tinha eu do Brasil e
apenas os voluntários da França. Mas alguém marcou Colômbia, várias marcações
na África e no Leste da Índia, além do extremo norte do Québec, o que sugere
povos das Primeiras Nações (povos indígenas).
Foto da escola internacional onde foi o evento de Natal no domingo de manhã. |
Durante a atividade, a minha supervisora
conversou sobre um caso com outro voluntário de um menino que o Collège Frontière não poderia atender
por tratar-se de um menino autista. Eu me voluntariei a cuidar dele, desde que
tivesse um outro voluntário para receber as outras crianças.
A minha orientadora manifestou
aprovação, porque trata-se de um menino brasileiro. Ela achou que o fato da
gente falar a mesma língua poderia ajudar e disse que iria contatar a mãe do
garoto para avisar que há a minha disponibilidade, mas será apenas por 2 meses
(tempo que posso ficar no Canadá).
À tarde, o voluntariado foi apenas com o
outro voluntário e eu. Nós fomos à biblioteca do bairro. Foram poucas crianças,
mas correu tudo bem. O francês leu um conto de Natal e depois as crianças
fizeram uma atividade. Foi puxado fazer duas atividades com crianças no mesmo
dia.
PELA PRIMEIRA VEZ, ALGUÉM ME PERGUNTOU SEM RODEIOS SE EU SOU
AUTISTA
Na mesma semana, um canadense que
convive comigo com maior frequência me perguntou, com toda a gentileza e
educação dos canadenses: “Você é autista?”. Ao que eu respondi que achava que
sim. Eu nunca fui oficialmente diagnosticada, mas eu atendo a todas as
características de autismo extremamente evidentes (estereotipias, dificuldades
de comunicação não verbal, dificuldades de reciprocidade social-emocional, etc).
Um voluntário lendo estórias para crianças. |
Fiquei um pouco mal com isso. Pensei um
pouco e resolvi ter uma conversa com esse canadense sobre as ações que
brasileiros geralmente fazem por causa do autismo. Consegui resumir em 5 pontos.
Neste post, vou chamar de autista todas
as pessoas que têm características do Transtorno do Espectro Autista (TEA). Sei
que estou generalizando muito (talvez mais do que eu deveria), para falar da
minha experiência pessoal.
PRIMEIRO: Autistas têm
alucinações.
Talvez isso seja um problema da minha
idade. O filme “Uma Mente Brilhante”, que trata de um personagem histórico com
esquizofrenia, ficou muito famoso na minha juventude. É comum que os autistas
tenham outras doenças mentais, normalmente, depressão e/ou transtorno de
ansiedade. No meu caso, eu tenho/tive depressão. Mas é muito comum as pessoas
acharem que eu tenho alucinações. As duas histórias bem marcantes na minha
vida.
Uma vez, na faculdade, eu saí com um
cara que eu achava bonito e que fazia aulas de francês comigo e eu contei uma
história de uma amiga do ensino médio na minha cidade natal. Era uma história
bem boba. Mas ele me perguntou se a minha amiga existia mesmo. Eu estava
contando a história de frente para o porta-retratos com a foto da minha amiga,
então, foi bem fácil só apontar o dedo e falar “É aquela moça ali”.
Foto de outro lado do colégio onde ocorreu o evento de Natal para famílias e crianças. |
Essa mesma amiga imigrou para Portugal
há muitos anos. E eu fui ao casamento dela na Europa. Aproveitando que eu já
estava na Europa, eu fui encontrar um ex-colega de faculdade na França, com a
família dele e tudo mais. A gente passeou, se divertiu, etc. Mas não postei
nada nas redes sociais. Naquela época eu não tinha nem celular e nem máquina
fotográfica bons. E eu não gosto de ficar postando coisas nas redes. Voltando,
contei algo como “Encontrei fulano em Paris” e pessoas próximas a mim foram investigar
se esse fulano realmente existia. Tive que procurar as fotos para mostrar. Foi
um pouco embaraçoso para mim e me senti mal na hora. Mas hoje virou piada.
SEGUNDO: Autistas são
espíritas e/ou possuídos pelo demônio.
Eu morei com uma menina que fazia
doutorado em uma área de ciências exatas. Ela era evangélica e tinha um
conhecimento limitado sobre outras áreas do conhecimento. Essa menina me
perguntou se eu era autista porque minha mãe frequentava terreiros de macumba
ou espiritismo. Na cabeça dessa doutora, minha mãe (por que só a minha mãe e
não o meu pai?) ia a centros espíritas ou de religiões de matriz africana e lá
ela ofereceu o meu corpo para os espíritos, demônios, etc. Por isso, que eu
nasci autista.
Uma vez, já tentaram explicar com aborto
também. A minha mãe queria me abortar, por isso, que eu nasci assim. Tenho
fortes evidências para acreditar que eu fui uma filha muito desejada. Mas mesmo
que eu não fosse, autismo não é causado por tentativas de aborto. Embora não
tenha nada a ver com a história que eu quero contar, é outra explicação onde a “culpa”
é só da minha mãe e é dada por pessoas religiosas.
Centro de assistência social para famílias monoparentais. |
Acho que é só para desmentir a teoria da
“possessão demoníaca”. Talvez eu venha uma das únicas famílias brasileiras onde
nenhum membro nunca foi a um centro espírita ou de religião africana. Minha
família é ultra-conservadora nesse sentido de seguir os preceitos judaicos e
cristãos para práticas religiosas. Na infância, eu perguntava para minha mãe o
que era candomblé e ela me respondia que teve Teologia na faculdade e que na visão
do professor dela religiões de matriz africana eram folclore popular, mas que
eu deveria respeitar assim mesmo. Nunca entrou um livro espírita na minha casa
e eu nunca li um livro espírita até meus 30 anos. Agora já li uns 2 ou 3 e não
escrevi nada para o blog, porque eu não gostei da leitura.
Mesmo que minha mãe fosse mãe de
santo e tivesse um terreiro, autismo não é causado por espiritismo. Mas eu fico
com medo. Uma vez uma colega de trabalho católica que queria saber mais sobre o
espiritismo veio me perguntar o que eu achava. Ela deu muito azar na escolha da
interlocutora. Minha reação foi “Por que, em um departamento onde mais da
metade das pessoas são espíritas, você veio perguntar para mim, que não gosto
dessa religião?”. Depois eu expliquei que a minha condição é associada à
práticas de espiritismo ou “feitiçaria”. Ela se desculpou, disse que perguntou
para mim porque eu estudo muitas coisas, porque eu pareço saber um pouco de
tudo e não quis me ofender. Eu acredito que seja verdade. Mas gato escaldado
tem medo de água fria.
TERCEIRO: Autistas são
de esquerda e/ou pobre
Eu não acompanho a moda. Para mim,
vestir uma roupa é só estar confortável. Também não tenho interesse em
tecnologia. Muitos autistas têm foco de interesse em tecnologia. Eu nunca tive.
Mas eu tenho uma opinião
político-econômica. Eu acredito no liberalismo tanto para a economia quanto
para os costumes. Eu sou liberal, de fato. Para mim, liberalismo que não
envolve os dois aspectos, não é liberalismo. No Brasil, eu seria de direita,
por causa da parte econômica. No Canadá, eu seria de esquerda, por causa da parte
social. No Brasil, eu fui chamada de “comunista”, “socialista”, “de esquerda” a
minha vida inteira. Ninguém nunca vem e pergunta a minha opinião político-econômica.
As pessoas veem o meu comportamento “estranho” e já me colocam na esfera da “esquerda”.
Quando eu era mais nova, eu ficava muito triste com isso. Dentro dessa categoria, tem o pressuposto de "uso de drogas". Na verdade, a pessoa não é autista, ela é "de esquerda" e "usa drogas".
Agora que a Greta Thunberg, outra
autista, virou uma personagem relevante na esquerda. Essa generalização “autista”
igual “esquerda” deve estar um inferno no Brasil. Eu acredito que a maioria dos
autistas (como a maioria da população) não têm uma opinião político-econômica.
Mas se você quer saber a opinião de uma pessoa autista sobre política ou
economia, pergunte a ela. Por favor, não assuma que todos os autistas são “comunistas”.
A associação com pobreza, eu demorei
mais para perceber. Até porque, por um longo período da minha vida, eu fui
pobre. Eu tenho um grande amigo que gosta muito de celulares de uma determinada
marca. Ele acompanha todos os lançamentos. Eu resolvi comprar o celular que ele
me indica. Há uns três anos, comprei um celular de última geração. Isso causou
um espanto em alguns colegas. Tive uma reação bem autista quando me perguntaram
como eu tinha comprado aquele celular: “Com dinheiro. Fui na loja e comprei.”.
Só depois que eu fui pensar nas nuances do ocorrido.
Um rio que corta Sherbrooke. Acho que é o Magog. |
Condição financeira é algo que muda
rapidamente. Mas os pobres são estigmatizados no Brasil. Eu já estive por cima
e por baixo. Hoje eu me considero mais por baixo (estou na Pós-Graduação no
Brasil!). Mas eu já fiz hipismo, esgrima, fui educada em 3 idiomas (inglês,
espanhol e francês) e já visiteis mais de 20 países... Eu esperava que fosse óbvio
que, mesmo com todas as dificuldades do meu momento atual, eu não estou na
classe mais baixa da população brasileira. Comprar um celular não pode ser
considerada a coisa mais extraordinária da minha vida.
Recentemente eu me lembrei de uma outra
história dos meus tempos de faculdade. Há 15 anos. Não tinha internet móvel
como tem hoje. Não tinha Uber. Na primeira vez que eu tentei ir para o Canadá,
eu tive que ir para o campus principal da Universidade de São Paulo (USP). Foi
a primeira vez que eu fui a São Paulo. Na época, eu tinha um namoradinho que
morava no Itaim Bibi (um bairro caro de São Paulo).
Fachada do Museu de Ciências Naturais de Sherbrooke. |
Eu combinei de dormir na casa dele
depois da prova para ir para o Canadá. Foi muito gentil da parte dele me ajudar
e sou grata por isso até hoje. Sair do campus do Butantã para chegar no Itaim
Bibi com transporte público, naquela época, exigia aprender um monte de coisas
novas. Não tinha Google mapas. Lembro que ele me disse: “Não pergunta como ir
para o Itaim Bibi, porque ninguém vai acreditar que você realmente está
querendo ir para o Itaim Bibi. Você tem cara de povo do Itaim (um dos bairros
mais pobres de São Paulo). Se você precisar pedir informação, enfatiza muito o
BIBI no final ou pergunta por Higienópolis (que é o bairro do lado)”. Hoje eu
me pergunto se o “você tem cara de povo do Itaim” tem a ver com autismo.
QUARTO: Autistas são
super-inteligentes
Esse é um mito que sempre me
beneficiou. Mas é um mito. O autismo é uma condição que não tem nenhuma relação
com a inteligência. Um amigo uma vez comentou (e eu concordo) que os autistas
que não são super-inteligentes não sobrevivem, porque a nossa sociedade é cruel
e vai excluí-los brutalmente antes que eles tenham chance de alcançar alguma posição
de destaque. Infelizmente, essa suposição pode ter um fundo de verdade.
QUINTO: Autismo é
genético e mais grave para homens, enquanto para mulheres é raríssimo, sempre
mais brando, e causado por traumas
Eu ganhei uma bolsa no ensino médio
em um colégio particular e era isso que nossa professora de biologia ensinava.
Era uma profissional extraordinária. Só pelo fato de eu ter sido ensinada sobre
autismo no ensino médio, já denota que eu tive uma formação de elite. Mas a
teoria sobre autismo já foi completamente revista e esses pressupostos caíram por
terra.
COMO O AUTISMO É
VISTO NO CANADÁ?
Voltando a história do canadense que me
perguntou se eu sou autista. Eu contei a ele os cinco estigmas que eu já vivi
no Brasil e ele me respondeu que não sabe como é ser autista no Canadá e quais
são as políticas para eles. A única coisa que ele pode afirmar sem medo é que,
no Canadá, ninguém vai achar que eu sou autista porque meus pais praticam o
espiritismo ou eu estou sob uma possessão demoníaca (Risos!). Ele também disse que autismo no Canadá não é tabu. O que, para mim,
já é um grande alívio.
Espero poder ter mais experiências aqui
para escrever algo mais embasado em fatos sobre como o autismo é visto e
tratado no Canadá. Estou escrevendo hoje, porque amanhã vou visitar uma aldeia
indígena na cidade de Québec e depois já é Natal.
BOAS FESTAS!
Minha querida amiga, seu post foi tão esclarecedor! Puxa vida, eu sabia que as pessoas com TEA sofriam inúmeros tipos de preconceito, mas nunca tinha parado para pensar de que forma isso acontecia! Sinto muito que você tenha tido que passar por tudo isso! 😞 Muito obrigada pelas informações valiosas!
ResponderExcluirRô, quem tem uma amiga, tem um tesouro. Muito obrigada pela sua amizade.
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