COMO SABER SE É UMA PESQUISA CIENTÍFICA DE VERDADE?

Oi, gente. Oh, eu aqui de novo. Nesta semana, descobri que um filme (Billy Elliot) que eu sempre acreditei que fosse uma história real, na verdade, não é. Era tudo ficção. Lembro que, no passado mais de uma vez, falei para colegas de trabalho sobre esse filme, como se fosse uma história real. Ainda acho que é um grande filme, mas estou com vergonha de ter me enganado sobre algo tão simples. Já aconteceu com vocês?


Filme que eu achava que fosse baseado em uma história real, mas, na verdade, não é.


Isso me fez pensar em questionamentos de amigos, em redes sociais, sobre vídeos e informações sobre a covid-19. Não sou especialista em biologia ou infectologia. Nunca pesquisei na área de saúde. Mas tenho cinco anos de experiência com pesquisa científica.

Os métodos de pesquisa científica, de todas as áreas, seguem padrões parecidos. Por exemplo, quando eu fui para Université de Sherbrooke no Canadá, tive que estudar muito sobre como fazer um projeto de pesquisa e quais os métodos eu poderia empregar. Para isso, li principalmente o livro Research Design: Qualitative, Quantitative and Mixed Methods Approach (Projeto de Pesquisa: Abordagens Qualitativas, Quantitativas e Métodos Mistos) de John W. Creswell e J. David Creswell. Ambos os autores (pai e filho) são médicos e professores de escolas de Medicina nos EUA. Portanto, é um livro de métodos científicos com muitos exemplos na área de saúde. Como a metodologia científica é igual para todas as áreas, eu pude usá-lo também na minha pesquisa (gestão estratégica de e-commerce).


Livro sobre metodologias aplicadas em pesquisas médicas, que eu utilizei para escrever minha tese.

COMO FUNCIONA A PESQUISA MÉDICA?


Para descobrir, por exemplo, se um remédio funciona para tratar uma determinada doença, nós temos que usar método de pesquisa quantitativa. Ou seja, ela precisa ter resultados que sejam estatisticamente comprovados para uma determinada margem de confiabilidade (digamos, por exemplo, 99% de confiabilidade). Como se faz isso?

Primeiramente, toda pesquisa precisa ser planejada, por escrito, nos mínimos detalhes antes. Pesquisas na área de saúde com pessoas precisam registrar um protocolo e ser aprovada por um comitê de ética, que engloba esferas do governo federal de cada país. Eu nunca fiz pesquisas com medicamentos no Brasil, portanto não sei onde registrar um protocolo aqui. Nos EUA, um dos locais para registro é NIH National Institute of Allergy and Infectious Diseases (Instituto Nacional de Doenças Alérgicas e Infecciosas, link em inglês aqui). Todas as pesquisas com seres humanos no Brasil devem ser submetidas para aprovação do comitê de ética na Plataforma Brasil (link aqui).


Imagem retirada do site PixaBay.


Ok, depois do planejamento da pesquisa, do registro do protocolo e da aprovação no comitê de ética, qual o segundo passo? O segundo passo é selecionar um grupo de teste (que vai receber o remédio) e um grupo de controle (que não vai receber o remédio). Ambos os grupos normalmente têm o mesmo tamanho.

Por que isso? Para evitar fraudes e autoengano. Por exemplo, a covid-19 é uma doença, da qual, com certeza, mais da metade das pessoas infectadas sobrevivem. Suponhamos que se dê apenas aspirina para um grupo de 30 pessoas (com idades e condições de saúde aleatórias). Provavelmente mais de 25 delas sobreviverão. Foi a aspirina que curou? Não. Daí a importância do grupo de controle para mostrar isso. Se foi dada aspirina para um grupo de 30 pessoas e 25 sobreviveram e não foi dado nada para outro grupo (também aleatório) de 30 pessoas e 25 (ou mais) pessoas também sobreviveram, ficou provado que a aspirina não teve nenhum efeito na cura.

Um estudo dos EUA com dois grupos de veteranos infectados com covid-19, um que foi tratado com cloroquina e outro não, mostrou que, na verdade, morreu mais gente no grupo que tomou cloroquina do que no grupo que não tomou (acesse clicando aqui). Isso leva a crer que a cloroquina faça mais mal do que bem.


COMO FUNCIONA A LITERATURA CIENTÍFICA?


Existe uma grande diferença entre um artigo de jornal para divulgação científica (como o do portal G1 que acabei de compartilhar), um artigo científico e um rascunho online com um carimbo de uma universidade.

O artigo de jornal para divulgação científica é feito, na maioria das vezes, por um jornalista que escreve o texto de maneira simples para que pessoas que não têm formação na área possam entender os resultados de um artigo verdadeiramente científico. Existem diversos jornalistas que dedicam a carreira a isso. Algo muito louvável. Ao se ler um artigo assim, é preciso prestar muita atenção para saber: (1) se o texto cita qual a fonte original daquela pesquisa e (2) se a fonte original daquela informação é um jornal científico. Por exemplo, a reportagem que eu compartilhei cita a fonte como sendo o jornal científico The New England Journal of Medicine

Note a honestidade jornalística em dizer que o "estudo não foi revisado pelos pares" (reportagem do dia 21 de abril), logo abaixo vou explicar porque isso é importante. Para suportar essa evidência de que a cloroquina não possui efeitos clínicos compravados, já existe um artigo revisado pelo pares, publicado no mesmo jornal científico no dia 7 de maio (acesse clicando aqui). O artigo que foi revisado pelo pares estudou 1.446 pacientes entubados, sendo um grupo que tomava a medicação e outro que não tomava. Os resultados não apontaram eficácia do remédio. A única restrição que os autores fizeram é de que seu estudo foi feito apenas com pessoas que já estavam entubadas, é preciso realizar nova bateria de testes  controlados com amostras aleatórias (isto é, também com pessoas que não chegaram a fase de ser entubada).


Site do jornal científico citado na matéria do G1. O artigo científico original pode ser procurado aqui.

Muitos jornais científicos são pagos e alguns são abertos ao público. Normalmente apenas grandes universidades têm recursos suficientes para pagar para que seus pesquisadores tenham acesso aos jornais científicos, possam lê-los e se atualizar sobre as pesquisas mais recentes nas suas áreas.

Em caráter emergencial, muitos jornais científicos estão liberando o acesso a todos os seus artigos sobre covid-19 , independentemente de pagamento. Em resumo, jornais científicos são caros, têm sua linguagem própria (muito pesada em termos técnicos) e normalmente só são úteis e interessantes para a leitura de especialistas.


QUEM ESCREVE E COMO SE PUBLICA EM UM JORNAL CIENTÍFICO?


Depois de se passar por todas as etapas da pesquisa e se os resultados parecerem interessantes, cientistas podem escrever um artigo (que nós chamamos de manuscrito) e enviar para um jornal científico que eles acharem relevante. Esse envio é feito por um sistema eletrônico no site do jornal. O manuscrito vai direto para um dos editores. O editor (ou editora) lê o manuscrito e decide se vai mandar para a próxima etapa ou não.

Se o manuscrito passar pelo revisor (ou revisora), ele é enviado para a revisão de pares. O que significa isso? Os nomes dos autores são retirados, e o manuscrito é enviado, sem identificação, para, pelo menos dois especialistas da mesma área (em qualquer lugar do mundo) para avaliação. Se todos os especialistas tiverem um consenso de que o manuscrito merece ser publicado, ele é publicado. Na minha experiência (de 4 artigos internacionais publicados), isso nunca acontece.

Normalmente, pelo menos um especialista fica com alguma dúvida e questiona alguma coisa e o manuscrito volta para a revisão dos autores. Os autores também não sabem quem são os revisores e têm de responder e reescrever o manuscrito de forma sigilosa pelo sistema (às vezes, isso acontece duas ou três vezes com o mesmo artigo). Esse processo pode levar meses ou até anos. Mas, como a revisão é cega, garante que o trabalho seja aprovado pelo mérito e pela qualidade científica. Essa é a beleza do desenvolvimento científico verdadeiro. As condições físicas, religiosas, políticas, etc. dos autores não importam. O que importa é o rigor do método e a qualidade dos resultados.

 

Exemplo de um jornal científico importante na minha área. Os números 6.36 (Cite Score) e 4.392 (Impact Score) indicam a relevância deste jornal para os cientistas.


Eu fico muito chateada quando leio algo como “literatura científica chinesa”. Literatura científica não tem nacionalidade. Ela é global e se dá na língua inglesa. Por exemplo, um jornal muito importante na minha área é o Expert Systems and Applications (Sistemas Especializados e Aplicações, acesse a página aqui). A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) pede para indicar a cidade onde o jornal é impresso. Isso é sempre um problema para mim, porque eu não tenho a menor ideia de onde qualquer jornal é impresso, não tenho nem certeza se ele é impresso. Pois todo mundo só lê o jornal online e todos os envios e comunicações são feitos online. O que importa é a credibilidade que o jornal tem no meio dos cientistas, o que é medido por um índice como o Cite Score ou Impact Factor (quanto maior melhor).

Além disso, quando eu peço para ver a lista de editores do jornal do exemplo, aparecem 36 editores, de diversas universidades em quatro continentes. Isso é bem comum nos jornais sérios. Para completar, é muito normal que um editor (ou editora) fique apenas dois ou três anos e depois mude de jornal. Não existe um jornal “de tal país”. Existe um jornal científico e acabou. Se é científico, por definição, ele é internacional.

O último ponto que eu queria enfatizar aqui, talvez seja o mais importante. Muitas universidades disponibilizam que seus estudantes publiquem seus rascunhos (não chega nem a ser um manuscrito ainda) online. Rascunho é rascunho. Ninguém se compromete legalmente por aquilo, nem os autores nem a universidade. Mesmo que a universidade seja famosa como Harvard.


Este é o logo da Universidade de Singapura. O logo de quase todas as universidades é gratuito e de livre acesso. Só porque eu coloquei o logo aqui (ou no cabeçalho), isso não significa que eu tenho alguma ligação com a universidade ou que a universidade saiba e aprove qualquer coisa que eu escrevi neste texto. Um logo é só um logo.


Eu vi um vídeo no Youtube, de um médico ligado ao governo, onde ele cita um estudo da “Universidade de Singapura”. A imagem aparece muito rapidamente, não dá para ler o nome dos autores e ele não coloca nenhuma lista de referências ao fim (ou na descrição do vídeo). Isso me leva a crer que, provavelmente, trata-se de um rascunho não publicado sem nenhum valor científico ou de divulgação.

Se eu tiver que dar um conselho apenas, que resume este texto, o conselho é: Acredite apenas em artigos publicados (ou referenciados) em jornais científicos! 

Aproveito este momento para recomendar o blog PJPesquisa (link aqui), um doutor da Universidade de São Paulo que lê os artigos científicos da semana sobre covid-19 e escreve divulgação científica resumindo os resultados. Todos com referência! Isso é muito importante. Além disso, ele escreve de forma clara e didática.

Muito obrigada por permitirem que eu compartilhe isso. Querendo saber mais novidades, vocês me acham no Facebook e no Instagram.

                  

BOAS LEITURAS!


Comentários

  1. Isso é um trabalho de utilidade pública, Isotília! Parabéns! Já passou o tempo de as pessoas, sobretudo aqui no Brasil, saberem COMO se informar e abandonar, de uma vez por todas, o espírito do "achismo".

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  2. Texto maravilhoso, leitura fundamental!!! Preciso compartilhar para todos os meus contatos!

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  3. Parabéns. Isotilia. Novamente, admirando seu trabalho.

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  4. Trabalho magnifico. Covrsamos apenas uma vez no Teatro Guaíra em curitiba. Convenci -me imediatamente estar diante de alguém que contribuiria para mudanças. Eu continuo operando no mercado de capitais tentando adivinhar as mudancas que virão com uma taxa selic 2.25 % ao ano. Um grande abraco.

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    1. Muito obrigada, Fráter. Neste mês, vou publicar mais sobre as coisas que estou aprendendo sobre investimentos. Espero sinceramente que goste. Um forte abraço e uma ótima semana.

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