A BÍBLIA E O RACISMO: O QUE NÃO ESTÁ NA BÍBLIA?

Olá, pessoal. É um pouco estranho ficar na moda. Quem lê o blog há algum tempo, já percebeu que eu milito contra o racismo. Agora com a tragédia do George Floyd, esse tema ganhou ainda mais relevância mundial. Espero que isso se torne um ponto de virada para que mais pessoas se tornem militantes contra o racismo.

O ponto de virada que me fez aderir a causa antirracista foi a leitura do livro Origens do Totalitarismo de Hannah Arendt (1906 – 1975). A filósofa alemã de origem judaica analisou o racismo na África do Sul. A maneira como ela explicou no livro me levou a crer que a África do Sul resistiu (e talvez ainda resista) em adotar o capitalismo para poder manter os privilégios raciais. Durante toda leitura, eu pensei em muitos paralelos entre a História da África do Sul e do Brasil e como nós também resistimos à adoção plena do capitalismo para manter os privilégios de alguns grupos. Isso me fez entender que quem defende o capitalismo e o liberalismo deve ser, obrigatoriamente, antirracista. Eu acredito que se o Brasil fosse verdadeiramente capitalista e liberal, nós teríamos negros bilionários, como os EUA têm o Jay-Z, Michael Jordan, Oprah Winfrey, David Steward e Robert Smith.


Leitura que me fez refletir sobre a inportância do antirracismo para o desenvolvimento econômico.

Aí eu vi o post abaixo e, depois de ter lido toda a Bíblia mais de 6 vezes, alguns livros mais 20, dedicar mais de seis horas por semana ao estudo das religiões, especialmente do judaísmo, há mais de 20 anos, pensei: "Se não eu, quem? Se não agora, quando?" e decidi responder. 



Para isso, vou me basear na tradução do Gênesis de André Chouraqui (1917 – 2007). Chouraqui era judeu sefaradita nascido na Argélia e falecido em Israel. Entre as coisas fascinantes da vida deste autor, destaca-se que ele dedicou 60 anos da sua vida a traduzir os cinco primeiros livros da Bíblia, os Salmos, o Novo Testamento e o Alcorão. Infelizmente eu só tenho a tradução dele para o Gênesis (que tem 547 páginas). Mas aceito os outros livros (em francês ou em português), se alguém quiser me dar de presente (Fica a dica! Risos). Por isso, quando for Gênesis, citarei a tradução do Chouraqui, para os demais, a do João Ferreira de Almeida, por ser fácil de encontrar e canônica para o protestantismo brasileiro.


Tradução do Gênesis, em que eu me baseei para escrever este post.

Quem justifica o racismo com a Bíblia, geralmente cita Gênesis 4:15 e Gênesis 9:25-27. O post está se referindo à segunda citação, por isso, vou me concentrar nela. Contextualizando: houve o dilúvio, Noé construiu a arca, passou o dilúvio, Noé plantou uma vinha, ficou pelado e um dos seus filhos o viu nu. Isso é considerado um pecado grave pelo judaísmo. Esse filho se chamava Can (em hebraico, Hâm) e era pai de Canaã (em hebraico, Kena’ân) (Gênesis 9:22). Noé amaldiçoou este filho em nome do neto. É um pouco estranho para mim entender porque eles são tratados como se fossem a mesma pessoa, mas segue o texto explicitamente (Gênesis 9:25-27):

“Ele diz; “Kena’ân é infame.

Ele será para seus irmãos um servo de servos.”

Ele diz: “Adonai, o Elohîms de Shém, bendito é:

Kena’ân será seu servo.

Elohîm expandirá Ièphet,

Ele habitará as tendas de Shém.

Kena’ân será seu servo.”

Primeiramente, cabe ressaltar que servo e escravo são duas coisas distintas. Chouraqui comenta o versículo 26:

O Elohîms de Shém: o Gênesis sublinha o papel representado pela descendência de Noah (Noé). Seus Elohîms tornar-se-á historicamente o Elohîms dos filhos de Shém, os semitas.” Nota do blog, semitas são majoritariamente judeus e árabes. Chouraqui continua:

“O Alcorão nada fala a respeito dos filhos de Noah. No relato do dilúvio é dito que eles eram dignos de escapar ao aniquilamento, exceto esse filho morto afogado em que os comentadores do Islã veem Kena’ân, o filho de Hâm. A sura 66/10 sugere também que a mulher de Noah tinha sido infiel. Os comentadores declaram que ela impelia o povo a acreditar que seu marido estava louco. Al-Kisa’i informa, por seu lado, que Noah possuía duas mulheres, uma fiel – a mãe de Shém, Hâm e Ièphèt; a outra hipócrita e traidora, mãe desse Kena’ân, morto afogado.”

Nota-se que há polêmica se Noé tinha três ou quatro filhos e qual foi o filho amaldiçoado.

Para os versículos 27 ao 29, Chouraqui comenta: “Al-Kisa’i precisa que antes de morrer, Noah reparte a terra entre seus três filhos. Shém, o pai dos semitas, recebe a península arábica e ainda a Síria; Hâm, o pai dos sudaneses, recebe o Magreb. Ièphèt herda o Mashquir, o oriente árabe, ele é ancestral dos turcos.” Nota do blog, Magreb é a região do Oeste da África, onde fica o Marrocas, a Argélia e a Tunísia, um povo muito miscigenado com os portugueses e espanhóis.

Capítulo 10, versículo 1:

“Eis as descendências dos filhos de Noah, Shém, Hâm e Iéphèt. Eles conceberam filhos após o dilúvio.”

Nota do blog, essa nota “eles conceberam filhos após o dilúvio” dá margem à interpretação de que teve outro (ou outros) que não conceberam. No caso, o filho amaldiçoado. Chouraqui comenta: “A humanidade é aqui dividida em três ramos geográficos, étnicos e linguísticos: os semitas (Shèm), os camitas (Hâm) e os descendentes de Ièphèt, que parecem representar os povos do Ocidente e do Norte. No total, setenta nações constituem biblicamente o conjunto do gênero humano em sua unidade”.

Vamos voltar à maldição de Noé, ele disse que Canaã seria servo de servos (9:25), que D'us faria prosperar as nações de Ièphèt (leia-se os povos do Hemisfério Norte) e que eles habitarem as tendas de Shém (leia-se dos judeus e dos árabes) (9:27). Ou seja, nessa interpretação ao pé da letra, os judeus e árabes são os povos mais importantes do mundo, que devem ser servidos pelos povos do Ocidente e do Hemisfério Norte, os quais devem ser servidos pelos descendentes de Cam (normalmente interpretados como sendo todos povos negros, o que é um desvio até um pouco grotesco). Embora os descendentes de Cam sejam normalmente interpretados como sendo os povos negros e os que foram escravizados, conceitualmente a região de onde os escravizados vieram para o Brasil, simplesmente não são citadas na Bíblia (Nigéria, Angola, Moçambique e a África Sub-saariana em geral), logo não são sejam descendentes de Cam, ou seja, essa justificativa não cola e existiam pessoas de fé e de outras etnias que podem se enquadrar como tais descendentes. Baseado nessa interpretação, gostaria de saber quando os brasileiros que têm essa fé vão vir até a minha casa me servir?

No capítulo 10, versículo 6, nomeia-se os filhos de Hâm: “Koush, Misraïm, Pout e Kena’ân.”. Chouraqui explica: “Koushs (Couche); país do alto-Nilo e a da costa do Mar Vermelho. Misraïms (Mesraim): o Egito em língua nacional e em árabe; Pout (Fut): Egípcios (uma parte de Koush), mas segundo outras opiniões, a Líbia; Kena’ân: aproximadamente o Líbano e Israël hoje.” Ou seja, a parte condenada à servidão (e não à escravidão, que fique bem claro) seriam povos que a habitavam as regiões do Líbano e Israel, há milhares de quilômetros da Nigéria.


Mapa do Alto e do Baixo Egito, mostrando o então país de Cuche, onde hoje é Sudão. Imagem retirada da Wikipédia.


Além disso, a Bíblia condena o racismo explicitamente no Velho Testamento. Moisés era casado com Zípora (em inglês, Sephora, igual àquela marca de loja de cosméticos), uma midianita, ou seja, alguém não-judia e originária da região da Arábia Saudita (Exôdos 2:21 e Exôdos 18).

Porém, em Números 12:1, encontra-se a seguinte passagem:

“E falaram Miriã e Arão contra Moisés, por causa da mulher cusita, com quem casara; porquanto tinha casado com uma mulher cusita."

Cusita é de Koush, onde hoje é o Sudão. Alguns dizem que era a mesma esposa, a Zípora e que Mirian estaria tentando “desqualificar” a cunhada chamando-a de “preta”. Outros dizem que, de fato, era uma segunda mulher de Moisés e que, de fato, ela era negra. Talvez o problema é que essa mulher cuxita não fosse judia. Mas a primeira esposa de Moisés também não era judia e nunca deu problema. Em ambos os casos, pode ser um dos casos mais antigos de racismo e xenofobia já registrados.

O fato é que parece que D”s não gostou nada disso, pois ele pune Miran com lepra (Número 12:9-10). É interessante notar que lepra é uma doença que causa manchas brancas na pele da pessoa. Sempre fiquei encabulada com esse fato de que D”s mudou a cor da pele de Mirian.

Entre as personagens que, com certeza, eram negros e foram muito importantes do Velho Testamento, destacam-se a Rainha de Sabá (2Crônicas 9: 1), cujo território que incluía a Etiópia e o Iêmen. E o servo etíope, chamado Ebede-Meleque, que salvou o profeta Jeremias (Jeremias 39: 15-18).

Meus conhecimentos sobre o Novo Testamento são mais limitados, mas consta que os romanos pediram para um cirineu carregar a cruz de Jesus quando ele não aguentava mais. Cirene era uma cidade no norte da Líbia, cuja população era majoritariamente negra. Se Jesus não era negro, com certeza, Simão Cirineu era. E também tinha os reis magos.

Muito obrigada por permitirem que eu compartilhe isso. Querendo saber mais novidades, vocês me acham no Facebook e no Instagram.

BOAS LEITURAS!

 

 


Comentários

  1. Boa tarde. Meu nome é José Renato, sou brasileiro. Fui um religioso dedicadíssimo por 25 anos. A ideia subjacente de que, as interpretações da bíblia em alguns casos alimenta o racismo me parece bem razoável. O comentário sobre o famigerado pastor Feliciano é um entre muitos exemplos. Nos anos 80 meu falecido sogro enfrentava o racismo visível na igreja presbiteriana. Essa ideia absurda sobre o filho de Noé, alimenta em algumas religiões e países sim, a ideia de que os negros descenderam de Cão (tradução do Brasil), o filho amaldiçoado. Mas o que os estudos genéticos apontam é que a humanidade descendeu de ancestrais negros. Vou aprofundar a pesquisa. Não há de fato nada que justifique o racismo, ou mesmo, determine qualquer capacidade humana com base na cor da pele. É uma das maiores infâmias e vergonha com as quais teremos que lidar ainda por muito tempo.

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    1. Muito obrigada, José Renato, por apoiar essa causa que é tão importante para nós e para o Brasil.

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