NADA ORTODOXA - UMA OPINIÃO SOBRE MOVIMENTOS RELIGIOSOS CONSERVADORES
Olá, pessoas! Tenho uma excelente
notícia. Nesta quarta-feira, defendi meu doutorado pela Universidade de São
Paulo. A defesa pode ser assistida na íntegra no Youtube (link aqui). Depois da defesa, ainda preciso fazer as correções que
a banca sugeriu. Eu tenho até 60 dias para isso. Como a banca sugeriu muitas
correções e preciso do título com urgência, vou ter que focar na revisão, para
entregar o mais rapidamente possível. Por isso, talvez eu escreva uma vez a
cada duas semanas, ao invés de toda semana.
NADA ORTODOXA – A MINISSÉRIE DA NETFLIX
Hoje quero falar sobre a minissérie
da Netflix “Nada
Ortodoxa”, que foi livremente baseada no livro autobiográfico de
Deborah Feldman (não disponível em português).
Se alguém ainda não viu a minissérie
e quer ver, fica o aviso de que vou dar spoiler.
Trata-se da história de uma judia, chamada Esty, de 19 anos, que foge de uma
comunidade judaica religiosa em Nova Iorque e do seu casamento (arranjado). Esty
foi criada pelos avós. Seu pai é alcoólatra e seus avós falaram para ela que a
mãe a abandonou. Eles também proíbem que ela fale com a mãe, que mora em
Berlim, sem a supervisão deles. Por exemplo, a mãe tentou ir ao casamento da
filha e foi retirada da festa. Para fugir, Esty tira cidadania alemã, com os
documentos que a mãe havia lhe dado. Ela vende as joias e foge para Berlim,
onde ela tenta se adaptar à vida secular (não religiosa) e ter aulas em um
conservatório de música. O marido descobre que Esty estava grávida e vai para
Berlim atrás dela, com um primo, que foi mandado por um rabino para,
supostamente, ajudar na procura por Esty.
COMO EU DESCOBRI A MINISSÉRIE?
A primeira vez que eu ouvi uma
referência sobre esta minissérie foi uma chamada no YouTube para um rabino
ortodoxo comentando a série. Eu procurei o trailer
da minissérie e assisti. Achei que seria uma minissérie sem repercussão e que
ninguém teria tempo para assistir uma bobagem daquelas. Eu estava errada.
Depois, uma moça de um grupo de estudos, que
eu faço parte, falou sobre a minissérie. Ela transparecia muita raiva de todos judeus, falou muita coisa
negativa sobre a cultura, principalmente, a parte de estudar a Torá (a Bíblia
judaica), baseado no que ela assistiu na minissérie.
Algum tempo depois, minha
professora de espanhol chilena, que é casada e não quer ter filhos, falou
negativamente sobre a série e sobre os
judeus (todos), que, segundo ela, baseado no que ela viu na minissérie, pressionavam
muito as mulheres para terem filhos.
Por último, um amigo próximo
assistiu a minissérie e, sabendo que eu estudo religiões sistematicamente há
mais de décadas, especialmente o judaísmo, queria que eu comentasse a
minissérie. Aí eu tive de assistir.
O QUE EU ACHEI?
Não gostei. Tecnicamente é mal
editada. Eu fiquei com a impressão de que era uma série gravada em, por
exemplo, oito episódios, mas eles precisaram cortar. Então, foram cortando até
ficar com quatro. Falta continuidade em algumas histórias paralelas.
INTERPRETAÇÃO JURÍDICA DA HISTÓRIA
Mas, como relato de uma experiência humana (não
exclusivamente judia), a história pode ser rica. Eu poderia comentar sobre
vários aspectos, por exemplo, o jurídico. Durante a minissérie, a Esty descobre
que sua mãe deixou um país da Europa para se mudar para os EUA e casar com o
pai dela (em um casamento arranjado). O casamento não deu certo, ela foi morar sozinha em um apartamento com Esty bebê. Os avós contrataram advogados e
tiraram a guarda dela da mãe. Ficou pouco claro se isso ocorreu nos EUA ou na
Alemanha. Pareceu que foi nos EUA.
Capa do livro que deu origem a minissérie. |
Também não destacaram que isso não
tem nada a ver com religião, mas, sim, com a legislação do país. Países que têm
legislações progressistas costumam dar a guarda dos filhos preferencialmente
para as mães. Dessa forma, as mulheres não ficam inibidas em pedir o divórcio,
porque sabem que não perderão a guarda dos filhos. MAS, quando os pais têm
nacionalidades diferentes, os países costumam dar a guarda para o cidadão (ou
cidadã) do país. Eu ouvi falar sobre o caso de uma executiva brasileira que se
divorciou, na Alemanha, de um alemão que não conseguiu comprovar que
trabalhasse e era alegadamente usuário de drogas. A Justiça alemã deu a guarda
de duas crianças pequenas para esse pai alemão. Assim sendo, a tragédia da
separação de Esty da mãe não é só uma questão religiosa. Teve toda uma
legislação laica que deu apoio a isso.
INTERPRETAÇÃO PSICOLÓGICA DA HISTÓRIA
Depois, as mentiras que os avós
contaram se caracterizariam, no Brasil, como crime de alienação parental. Do
ponto de vista psicológico, dá para arriscar várias interpretações. Por
exemplo, do ponto de vista da constelação familiar (teoria que eu não gosto,
mas que tem alguns acertos), podemos pensar que a Esty, primeiramente, tentou
rejeitar a mãe completamente, se tornando uma moça muito religiosa. Depois, em
um movimento de reconciliação, ela faz com que seu casamento não dê certo, para
ser como a mãe e, talvez, perdoa-la. Não sou, nem de longe, especialista no
tema. Apenas me pareceu que ela estava se sabotando para se reconciliar com a
mãe, assumindo que a minissérie é próxima da história real contata no livro.
Isso também independente de religião. Pessoas de qualquer credo e as ateias
ficam presas nesses ciclos.
OS JUDEUS SÃO TODOS IGUAIS?
Agora vamos à interpretação
religiosa. Antes de tudo é preciso dizer que existem vários grupos religiosos
judaicos. VÁRIOS. Com intepretações radicalmente distintas entre eles. Entre os
grandes grupos, existem os Liberais (ou Reformistas), os Conservadores e os Ortodoxos. Dentro de
cada grupo, existem uma infinidade de subgrupos. Assim como entre os cristãos,
existem os Católicos, os Protestantes e os Ortodoxos e, dentro de cada grupo,
existem diversas igrejas.
Exemplo de um culto do Judaísmo Reformista. Foto da Wikipédia. |
No caso, a protagonista fazia parte
de um subgrupo chamado Satmar, que pertence a um grupo maior chamado Hassídico,
que pertence ao grupo Ortodoxo. Os hassídicos representavam só 5% de todos os
judeus do mundo em 2016. A primeira vez que eu vi um judeu hassídico foi em
Montréal em 2019. Foi um choque muito grande, porque eu não estava
familiarizada com quase nada da cultura. E eles se vestiam e se comportavam de
um modo muito diferente do que eu estava acostumada. O grupo hassídico Satmar
possui entre 60.000 e 75.000 no mundo todo.
Grupo de rabinas do Judaísmo Conservador. Foto da Wikipédia. São Paulo teve três rabinas e o Rio de Janeiro, uma. |
Ou seja, numericamente, os hassídicos
Satmar são um grupo muito pequeno e não podem ser equiparados a “todos os judeus”. Assistir uma minissérie
e sair generalizando que todos os judeus são daquele jeito é muito injusto,
além de perigoso.
OUTRA AUTOBIOGRAFIA – DESSA VEZ, CRISTÃ
De modo geral, eu acho lamentável
que pessoas que nascem em comunidades religiosas fechadas não tenham o direito
e o apoio para sair. Por exemplo, existe a autobiografia de Tara Westover, em
português, “A
menina da montanha”, cujo subtítulo já explica a história da autora, filha de pais cristãos norte-americanos, ultra conservadores: “A trajetória
real da americana que pisou numa sala de aula pela primeira vez aos 17 anos até
a conquista do doutorado em Cambridge”.
Meta de leitura |
A COMUNIDADE CRISTÃ BRUDERHOF
Um exemplo positivo de comunidade religiosa fechada, na minha opinião, é a “Bruderhof”. Eles são cristãos anabatistas (também chamada de “ala radical” da Reforma Protestante), que vivem em 26 comunidades fechadas nos Estados Unidos, no Reino Unido, na Alemanha, na Áustria, no Paraguai e na Austrália. A primeira comunidade foi fundada na Alemanha, em 1920, por Eberhard Arnold. “Bruderhof” significa “O Lugar dos Irmãos”. Deve ter mais cristão Bruderfhof no mundo do que judeu Satmar, mas você já viu algum? Eu posso falar que os Bruderhof representam todos os cristãos?
Os “Bruderhof” têm canal no YouTube, em inglês, para divulgar o estilo de vida deles (link aqui). A BBC, canal de televisão britânico, fez um documentário sobre a comunidade do Reino Unido, que também está disponível no YouTube (link aqui). Segundo o documentário, quando os adolescentes da comunidade completam 18 anos, eles são mandados para Londres e são obrigados a viver e trabalhar lá por um ano. Durante esse processo, eles recebem apoio de uma rede estruturada, que fornece um alojamento, dinheiro para as necessidades básicas e apoio, em diversas esferas. Por exemplo, ajuda para montar um currículo e procurar emprego. Só depois dessa experiência de um ano, os jovens podem decidir se querem continuar no mundo exterior ou preferem voltar a viver na comunidade (presumivelmente para sempre).Veja o vídeo promocional dos Bruderhof abaixo.
Em média, a cada ano, três quartos
dos jovens decidem viver na comunidade “Bruderhof” e um quarto escolhe ficar no mundo
exterior. Eu acredito que, se fosse dada uma escolha, essa seria a média da
maioria das comunidades religiosas conservadoras. O grande problema é que, como
a maioria das comunidades não dão essa escolha, esse um quarto de pessoas
insatisfeitas (que não se adaptaram) pode gerar histórias humanas muito tristes
e trágicas. Tal como a da protagonista da minissérie “Não Ortodoxa”. Histórias
trágicas dão bons livros e filmes. E ninguém faz filme sobre os outros três
quartos de pessoas que estão plenamente satisfeitas com a vida que levam.
MEUS VALORES E MINHA VISÃO
Meus valores são os de respeito à
liberdade individual. É preciso garantir que as pessoas tenham direito de
escolha consciente. Mas também é preciso respeitar as escolhas que foram
feitas, mesmo que elas me parecem estranhas ou radicais demais. Sem julgamentos
e sem generalizações. Só porque eu não gosto (ou até destesto), não quer dizer que a pessoa não tenha direito de existir e se expressar como é.
Muito obrigada!
Boas Leituras!
P.S. Vocês também podem me acompanhar
pelo Facebook e
pelo Instagram.
Parabéns pelo doutorado, minha cara amiga!!! Muito sucesso e muitas realizações em sua brilhante carreira! Vou adorar assistir à sua tese! 🥰 Eu ainda não assisti a essa série, mas gostei bastante do seu ponto de vista! Eu pessoalmente tenho uma ressalva muito grande a grupos religiosos muito fechados e conservadores, pois muitos deles acabam se pautando em princípios machistas, porém temos de ter muito cuidado em não generalizar uma religião tão diversa com base em alguns de seus grupos minoritários. Gostei muito da sua observação!
ResponderExcluirMuito bem observado, Rô. Seus comentários sempre agregam valor.
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