A BÍBLIA JUDAICA E A GESTÃO DE PROJETOS: CABALÁ E DESIGN THINKING
Uma
vez, na minha graduação em Engenharia (terminada em 2009), nós tivemos aulas de
gerenciamento de projetos, abordando métodos tradicionais. Eu respondi alguma
coisa certa ou fui bem em uma prova (não me lembro ao certo), mesmo antes de
aprendermos o método. Lembro só que um colega veio me perguntar como eu sabia a
resposta e eu respondi “Lendo a Bíblia”. Causou surpresa e eu tive que
explicar: “É isso mesmo, o livro de Êxodos. Os judeus saindo do Egito. Imagina
que você tem um projeto. Seu projeto é tirar 3 milhões de pessoas a pé do Egito
para Israel, passando por um deserto. Essas pessoas têm as mais diversas idades
e condições de saúde, sem nenhum treinamento militar. Também têm animais e
objetos de posse individual, que podem ser pesados. Para acabar de te ajudar,
vem um exército inimigo te perseguido aí e, depois que você resolver esse detalhe,
os demais povos da terra por onde você (e seu time) passar vão ver vocês como
potenciais inimigos. Como você gerencia esse “Projeto Egito”? Moisés escolheu o
PMBOK.” Aí eu tracei paralelos ali para ele, na hora, entre o livro de Êxodos
os métodos tradicionais de gestão de projeto para tentar explicar como eu tinha
ido bem na prova. Nem lembro mais quais eram os paralelos. Só lembro que foi
inusitado.
Mais dez anos depois, nessa quarentena, descobri como a Bíblia também já traz os
métodos de gestão ágeis. Calma, que eu te explico!
Vamos
por partes. Existe uma história mística judaica sobre quatro sábios que
entraram no pardes. Pardes literalmente significa pomar em
hebraico, mas suas letras podem ser o acrônimo para as seguintes palavras e signficados:
“Pa”,
a inicial de p’shat (ordinário),
representa dimensão da literalidade;
“R”,
a inicial de remez (vestígio),
resolve ao nível alusivo e metonímico;
“De”,
da palavra derash (extraído), aponta
para a instância da metáfora e do simbolismo; e
“S”
de sod (segredo), compõe o território
do mítico e do místico.
De
modo geral, estava acostumada à interpretação de que esses são os quatro níveis
em que se pode entender a Torah (a Bíblia judaica). A primeira significa o
entendimento literal, o que já é extremamente difícil de se alcançar com maestria,
porque envolve uma definição clara do que está postulado e uma literalidade
absoluta ao texto no original. Entre os grandes sábios literalistas, destaca-se
o Rashi. Os demais níveis envolvem compreensões mais sutis. Por exemplo, a
guematria (numerologia judaica) envolve o nível de remez, o nível das “pistas” ou “vestígios”.
No
livro O segredo judaico de resolução de
problemas do rabino Nilton Bonder, o autor usa a tradução do Rabino Schneur
Zalman de Ladi (1745 – 1812) para esses quatro níveis: o primeiro sendo o “o
aparente do aparente”, o segundo, “o oculto do aparente”, o terceiro, “o
aparente do oculto” e o quarto, “o oculto do oculto”. Essa tradução parece ser
mais compreensível.
Mais
que isso, o rabino Bonder propõe, em seu livro, que esses quatro níveis podem
ser usados para, além de interpretar a Torah, resolver qualquer tipo de
problema no mundo prático, principalmente aqueles considerados insolúveis. Um
exemplo de como isso funciona na prática:
Conta-se que, na Idade
Média, uma criança foi encontrada morta em uma aldeia. Devido ao antissemitismo
da época, acusaram um judeu inocente de tê-la matado para pretensos rituais
macabros. O homem foi preso e ficou desesperado. Antes de seu julgamento,
chamou um rabino que o consolou com palavras como “Não desista, e lhe será
mostrado um caminho inimaginável.”.
No dia do julgamento, o
juiz, na conspiração para condenar o homem, quis fingir que permitiria um
julgamento justo. Ele pegou dois pedaços de papel e disse que iria escrever “culpado”
em um e “inocente” no outro. O homem escolheria um e o que estivesse escrito
lá, seria a sua sentença. Obviamente, o juiz escreveu “culpado” nos dois
pedaços de papel.
O que o acusado fez? Pegou
um pedaço de papel e comeu. Quando o questionaram por que ele fez aquilo e como eles
iriam resolver o problema agora, ele explicou que era só ler o que estava
escrito no pedaço de papel que ficou, pois, com certeza, no que ele engoliu,
estava escrito o contrário. Como estava escrito “culpado” em ambos os papéis,
mas o juiz não queria se passar por fraudador e mentiroso, assumiu-se que, no
papel que o homem engoliu, estava escrito “inocente” e ele foi inocentado. Com “uma
jogada de mestre”, ele inverteu suas possibilidades de 100% de condenação para
100% de salvação.
Ao
longo do livro, o rabino Bonder explica como usar esses quatro níveis de
compreensão, de modo sistemático, para resolver qualquer tipo de problema.
Como
eu também sou mentora em gestão de projetos em um curso de MBA, ao longo da
leitura, isso me fez traçar paralelos entre os quatro níveis de interpretação
da Torah e o conceito de Duplo Diamante da metodologia de gestão de projetos ágeis,
Design Thinking.
Esse
Duplo Diamante também tem quatro fases:
A
primeira fase é “Descobrir” abrange
o início do projeto, ou seja, é a fase de entendimento inicial sobre o problema
e sobre as necessidades que se quer atender. Ou seja, é fase da literalidade,
da exploração do “aparente do aparente”.
A
segunda fase é “Definir”, nessas
fases, os designers tentam entender todas as possibilidades identificadas
durante a fase de descoberta. No oculto do aparente, as interpretações são
feitas por similaridades, obviedades ocultas e encadeamento de obviedades.
A
terceira fase é “Desenvolver”,
paralela ao nível do “Aparente do Oculto” do judaísmo, essa fase em que
soluções ou conceitos são criados, construídos, testados e reiterados.
A
quarta fase é “Entregar”, paralela
ao nível “Oculto do Oculto”, essa fase envolve a produção e lançamento do
produto. Na palavras do rabino Bonder, “permite que tudo o que foi teórica e
praticamente experimentado venha a construir-se em comportamento, em parte do
que somos.”.
Espero
que tenham gostado das minhas divagações. Para quem quiser saber mais sobre o
método de Design Thinking e gestão de
projetos, recomendo as postagens do LinkedIn da Juliana dos Santos Paiva de
Oliveira (link aqui - texto em português).
Muito
obrigada por acompanhar meu trabalho. Este post será publicado também em inglês
no meu perfil do LinkedIn.
SOBRE AUTORA:
Isotilia Costa Melo é doutora em Engenharia de Produção pela Universidade de São Paulo (USP). O título de sua tese foi “E-Commerce: Eficiência comparada dos principais varejistas no Brasil e no Canadá”, propôs uma ferramenta para medir o desempenho das operações de e-commerce (com foco no estoque) É mentora das implementações de projetos finais do MBA em Gestão de Projetos (USP) e também candidata ao MBA de Negócios Digitais (USP). Ela tem mestrado em Engenharia Industrial (USP), com foco em medição de desempenho de cadeias de suprimentos agrícolas. Possui especialização em Engenharia de Soldagem (Mauá) e bacharelado em Engenharia Mecânica e 5 anos de experiência na Indústria Automotiva. Atualmente, seus interesses de pesquisa são E-commerce, Omni-Channel para Varejo e Instituições Financeiras, Valuation e Transformação Digital. Ela se baseia principalmente na Análise de Envoltória de Dados (DEA), Teoria de Controle Ótimo (OCT), econometria e técnicas de aprendizado profundo para conduzir suas pesquisas.
Que texto genial!!! Eu que não entendo de nenhuma das duas áreas (nem de textos bíblicos nem de planejamento) fiquei absorta na leitura, como os conceitos ficaram claros para mim! Sua didática é fantástica!!!
ResponderExcluirMuito obrigada, Rô! Você é uma fofa. Ser sempre didática é o meu objetivo. Muito obrigada.
Excluir