VIDA DE DOUTORANDA NO BRASIL... PRA COMEÇO DE CONVERSA, EU NÃO ESTUDO. EU TRABALHO COM PESQUISA

7 de abril de 2019. Pelo planejamento (relembre aqui), eu deveria ter terminado o livro Die Liebhaberinnen. Estou na página 176. O livro tem 205. Tá acabando, mas ainda não acabou. E o motivo é que eu não li todos os dias mesmo. Alguns dias li outro livro em português para compensar. Outros não li nada mesmo e fiquei abaixo da meta.
Para quem não sabe o que eu faço da vida, além de viajar pelo mundo e ler muitos livros (tem gente que acha que é mesmo só isso, risos!). Atualmente, estou inscrita no programa de doutorado em Engenharia de Produção da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC), pertencente à Universidade de São Paulo (USP). O programa de doutorado tem duração prevista quatro anos (em tempo regulamentar), nos quais a gente desenvolve um projeto de pesquisa.


Imagem retirada do site PixaBay.
VOCÊ RECEBE PARA ESTUDAR?

Primeiramente, quem faz doutorado não apenas estuda. A gente trabalha com pesquisa e ajuda a resolver os problemas da vida diária. Na Medicina, isso é mais visível. Foi graças ao trabalho dos alunos de Pós-Graduação e dos pesquisadores (de modo geral) que o Brasil pôde, por exemplo, ser o primeiro país a fazer o parto (de uma mulher que antes não podia engravidar) a partir de um útero transplantado de uma doadora morta. Um avanço notável para a Medicina a nível mundial (relembre a notícia, clicando aqui).
Atualmente eu recebo uma bolsa por isso, do Governo Federal, de R$ 2.200,00. Essa bolsa não conta como trabalho para eu me aposentar. Ao contrário do que acontece na maioria dos outros países, onde doutorado é visto oficialmente como trabalho e tem todos os direitos garantidos. Aqui, no Brasil, eu não tenho nenhum direito trabalhista. Caso eu sofra um acidente ou engravide, eu não tenho nenhum tipo de proteção social.

O QUE FAZ QUEM NÃO TEM BOLSA?

Quem não tem bolsa, é obrigado a trabalhar em outra área para se manter. Isso torna a qualidade da pesquisa brasileira muito baixa e nos joga para fora do jogo mundial. Faz a gente deixar de ser considerado um país sério na área científica. A perspectiva é que todas as bolsas serão cortadas até o final do ano. Eu tenho um currículo razoavelmente bom para ir trabalhar no exterior e não tenho dependentes para manter. Mas vocês precisam perceber que hoje, no Brasil, existem 180 mil pesquisadores que vivem de bolsa. É óbvio que no meio de toda essa gente tem pai e mãe de família que vai se ver sem recursos e com filhos para sustentar. Se as bolsas realmente forem cortadas como o governo ameaça, com certeza, haverão tragédias humanas.

Até quem tem bolsa é obrigado a trabalhar devido à precariedade da bolsa. Eu dou orientação para alunos de MBA (Master Business Administration) em uma escola de negócios. No meu caso, eu tive a sorte de ter um trabalho complementar na minha área, que agrega valor. Mas a maioria dos pesquisadores não têm essa sorte. Eu gosto muito de orientar trabalhos de conclusão de curso, principalmente, os de MBA.

COMO O SEU TRABALHO É AVALIADO?

Durante esses quatro anos de doutorado, eu ainda sou obrigada a cursar algumas disciplinas em sala de aula. No caso, 36 créditos (de hora aula), que eu fiz em mais ou menos um ano. Além disso, todos os bolsistas são obrigados a ter, pelo menos, um semestre de experiência didática. Nesse caso, a gente acompanha professores em sala de aula, ajuda a elaborar e corrigir provas, pode até dar algumas aulas, dependendo do professor.
Eliminadas as disciplinas obrigatórias, eu  estou "livre" para desenvolver meu projeto e escrever sua tese. No meu caso, eu estudo estratégias de comércio eletrônico em países em desenvolvimento, como o Brasil. A final do segundo ano, existe um exame de qualificação, onde eu apresento meu texto da tese (parcialmente concluída) para uma banca de três professores. Ao final do quarto ano, eu defendo a minha tese para uma banca de cinco professores. Se for aprovada, aí então, eu me torno uma doutora.
No momento, estou no final do segundo ano, preparando o meu texto para o exame de qualificação. Mas é só isso? Não. A gente também é avaliado pelo número de publicações e a relevância delas. Existem jornais acadêmicos (que os cientistas leem) em cada área. Você manda seu trabalho para esses jornais (sem que o nome dos autores esteja identificado, para que a avaliação seja imparcial). Esses jornais mandam seu trabalho para três ou cinco avaliadores, eles leem e avaliam. Esse processo pode durar meses ou até anos. As respostas dos avaliadores podem ser “publique o artigo”, “faça pequenas alterações e mande o artigo de volta para gente”, “faça grandes alterações e mande o artigo de volta para gente”, “rejeite o artigo”. Normalmente, você só publica direto, se seu artigo for aceito por unanimidade por todos os revisores (o que nunca aconteceu comigo).


Imagem retirada do site Pixabay.

Nós somos avaliados tanto pelo número de publicações que nós produzimos, quanto pela qualidade delas. A qualidade é medida por um índice associado ao jornal acadêmico. O índice mais aceito é o JCR. Nem todos os jornais possuem. Aqueles que não possuem JCR são considerados de menor qualidade. Para aqueles que possuem JCR, quanto maior melhor.
Um conhecido meu foi tentar uma vaga de pesquisador em uma universidade chilena e a chefe do departamento de lá disse para ele que só aceitavam doutores com, pelo menos, dois artigos com JCR já publicados.
Eu ainda não tenho nenhum artigo com JCR. Mas tenho dois artigos em jornais nacionais e cinco artigos em jornais internacionais, sendo dois deles entre os 100 melhores do mundo nas suas respectivas áreas. Agora estou lutando com um artigo que foi escrito em 2015, que agora recebeu uma “revisão menor” do melhor jornal da minha área (no mundo), para obter o meu primeiro artigo com JCR. Ainda preciso de mais outro até o final do doutorado para ter um currículo minimamente aceitável em padrões internacionais.
Além de publicar, nossos trabalhos ainda precisam ser citados. A gente tem um índice que mede o quanto nós somos citados dividido pelo quanto nós produzimos, chamado índice H. Se você entrar no Google Acadêmico e procurar pelo nome, você vai ver que tenho 7 artigos publicados, mas só um deles foi citado 3 vezes, por isso, meu fator h é 1. Se eu tivesse três artigos citados três vezes, meu índice h seria 3 (o que seria mais favorável para mim).
Além das publicações em jornais, a participação em congressos é muito importante para que os outros saibam o que você está fazendo, você saiba qual é o nível mundial de pesquisa na sua área, troque experiências e resolva problemas em conjunto, encontrando novos parceiros para colaboração acadêmica.

Além disso, também trabalhamos em projetos com a sociedade. Eu, por exemplo, trabalho em um projeto de distribuição de alimentos em Goiânia (Goiás), financiado pelo governo do Reino Unido. Fruto de uma dessas parcerias que conheci em um congresso e, como consequência, beneficia, antes de tudo, o povo goiano (saiba mais aqui).

ONDE É QUE O BICHO PEGA?

Além da questão de não termos nenhuma segurança social e não termos garantias que as bolsas vão continuar existindo, qual é a segunda dificuldade dos cientistas brasileiros em publicar internacionalmente? O inglês. Para se publicar, precisa-se de um(a) bom (boa) revisor(a) de inglês, mesmo que o seu nível já seja avançado. E isso custa dinheiro. Quando eu entrei no mestrado estava mais fácil conseguir dinheiro para revisar o inglês. Agora fazem muitos anos que eu não consigo mais. Já paguei uma revisão do meu próprio bolso (o que não é barato) e já contei com ajuda de amigos norte-americanos e canadenses para revisar. Mais uma vez, a Pós-Graduação deveria ser vista como uma profissão como as outras. Não dá para exigir que todos os pesquisadores fiquem pedindo favor de amigos estrangeiros (de graça) e que esses amigos ajudem sempre.
A terceira dificuldade é ir para congressos. Para ir a um congresso, você precisa submeter um trabalho (normalmente, também em inglês), que será avaliado. Se o seu trabalho for aprovado, você tem que se inscrever no congresso, o que normalmente custa caro. Daí, então, você precisa viajar para apresentar o seu trabalho. Quando eu entrei no mestrado, em 2015, a gente tinha verba para se inscrever em congressos e viajar (nacionalmente). Eu cheguei a ir a um congresso na Grécia apoiada pelo governo federal. Agora estou indo a esse congresso na Índia, financiada por recursos próprios. Eu tinha umas economias, é o melhor congresso da minha área. Submeti um trabalho e ele foi aceito. Acredito que ir lá apresentar pode abrir portas para uma carreira internacional e conseguir colaboradores internacionais, com fé em Deus. É uma manobra arriscada, que realmente está me custando muito. Mas não tinha outro jeito. Pelo menos, eu não vi outra saída. Dedico todos os resultados dessa viagem a Deus.


Taj Mahal, ponto turístico indiano.




DIVAGAÇÕES À PARTE

Coincidentemente, esse também é um conceito indiano que eu adaptei a minha vida. O texto sagrado indiano Bhagavad Gita registra uma conversa entre o guerreiro Arjuna e seu guia espiritual Krishna, durante uma batalha sangrenta, que dizimou quase toda Índia. Em uma passagem desse livro sagrado, Arjuna está desesperado porque não sabe o que fazer, não sabe se o que ele faz resultará em uma coisa boa ou em uma coisa ruim e quais serão as consequências que seus atos podem tomar. Quantas vezes a gente não faz uma coisa pensando que vai ser bom para gente e acaba acontecendo uma coisa ruim, que a gente não esperava, como consequência? E o contrário também é verdadeiro, quantas vezes, coisas que, na hora, foram horríveis para nós, não nos trouxeram grandes benefícios depois? Krishna (entendido como um ser sublime) então diz para você: “Tudo que você fizer, dedique a mim. Eu cuidarei das consequências para você.”.


Livro sagrado indiano.

Quem sou eu para querer explicar aqui as escrituras sagradas indianas? Não entendo quase nada. Eu já li mais de 10 vezes a Bíblia, por diferentes tradutores e em diferentes idiomas e ainda tenho dúvidas em vários pontos. Imagina um livro, como o Bhagavad Gita, que eu sou incapaz de ler no original. Mas essa parte do Bhagavad Gita me tocou, levei para minha vida e acho que ela teve um forte impacto positivo em todos os meus atos. Agora tudo que eu faço, eu dedico a Deus. Não precisa ser Krishna, pode ser um santo, um orixá ou qualquer outra entidade devocional em que você confia e acredita. O fato de haver esse “oferecimento” dá uma vida, um poder, uma energia, completamente diferentes de uma oração de quem só “pede”. Recomendo que todos (aqueles que acreditem em algo) pratiquem isso, porque mudou minha vida.

Tem gente que acha que todo cientista é ateu. O que não é verdade. A Ciência aceita pessoas de todos os credos, convicções políticas e classes sociais, desde que elas produzam com qualidade. Nesse sentido, a crença é um ato individual. As religiões não deveriam interferir na ciência e vice-versa. Mas isso é tema para outro post.

POR QUE A EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL É IMPORTANTE?

Experiência internacional é importante porque ela amplia os horizontes da mente e do conhecimento. Ela deveria ser obrigatória para todos os alunos de Graduação. Como eu já defendi aqui antes, eu era plenamente a favor do programa Ciência Sem Fronteiras, que levava estudantes para o exterior. Eu nunca pude usufruir dele porque eu já trabalhava quando ele começou e já tinha acabado quando eu fui fazer Mestrado. Fato que eu lamento muito.
Fui contemplada com uma bolsa de doutorado-sanduíche do governo brasileiro (que talvez seja a última da nossa História). Doutorado-sanduíche é quando a gente vai fazer uma parte da nossa pesquisa fora do Brasil. No caso, vou fazer seis meses no Canadá (com fé em Deus), a partir de setembro. Vou para o estado do Québec, onde eles falam francês, na Université Sherbrooke. A minha atual bolsa é do governo brasileiro, mas eu também submeti para uma bolsa do governo canadense, o ELAP. Vocês talvez se lembrem que, no ano passado, eu submeti para lá, mas não passei (relembre aqui). É sempre muito mais fácil ir para fora com uma bolsa do governo do seu país do que com a bolsa de um país estrangeiro. O esforço é importante, mas oferecer uma chance, por meio de, por exemplo, bolsas, também é. Caso eu seja contemplada nas duas bolsas (o resultado do ELAP só sai em junho), vou preferir a canadense.


Bandeira canadense. Imagem retirada do site Pixabay.

Então... Eu estou nessa vida de praticar os idiomas para não perder. Falo inglês todos os dias devido às atividades de pesquisa. Estou praticando o alemão lendo esse livro sobre o qual falei para vocês. Agora chegou um aluno de mestrado da Alemanha, que vem pesquisar com a gente. Ele precisa aprender português e eu quero praticar o alemão. Provavelmente nós vamos fazer uma troca. Além disso, tem um estudante da República Democrática do Congo (país africano cuja língua oficial é o francês), que vem falar francês comigo todas as quartas-feiras durante duas horas. Quando eu voltar da Índia, pretendo ler mais livros em francês. Também para praticar.

 O ambiente de uma universidade de prestígio como a USP é muito internacional. Esse é um dos aspectos que eu mais gosto. Isso permite um crescimento muito grande. Eu cresci muito como pessoa e como profissional nos últimos anos, porque tive o privilégio de estar aqui e servir com meu trabalho. Desejo que mais pessoas também possam ter esse privilégio.
Muito obrigada a você que acompanha o nosso trabalho. Por favor, fique à vontade para deixar seus comentários. Também é possível acompanhar as novidades pela nossa página no Facebook.
BOA SEMANA!
BOAS LEITURAS!


Comentários

  1. Excelente texto, Isotília. Um ótimo referencial para aqueles que pretendem ingressar em programas de pós-graduação stricto sensu do Brasil. Que ele tenha muitas leituras!!!

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  2. Parabéns pelo texto! É realmente revoltante tudo que está acontecendo! Força e Fé na luta.

    José Carlos Muniz

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  3. Surpreendente como uma pessoa pode ser incrivelmente dedicada e esforçada diante de tantas dificuldades... minha completa admiração e respeito por esse ser humano incrível que você é... palavras não são suficientes para traduzir o que você representa para nosso tempo. Saudações e felicidades

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